Monday, October 31, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo V.
Bento de Espinoza e o Pato Donald
Episódio I

Na realidade a vida da Clarinha não era assim tão simples. Basta ver: O namorado fora, sempre sujeito a ser extinto como espécie futebolística num Domingo de sarrafada, as noites frias a olhar para o retrato dele e a suspirar.
Pior que a suspirar. Onde estará ele agora, nalgum bar de alterne a ouvir ordinarices com sotaque Paulista? Com alguma gaja apreciadora das suas qualidades como futebolista?
Que lhe arrancava os olhos, pensava. A ele e a ela.

Mas se bem que o ciúme de certo modo aqueça a alma não é de modo nenhum substituto para o suave aconchego do amor.

A telenovela depois do jantar não podia de modo nenhum satisfazer os anseios de uma jovem. É a vida.

É nesta altura que entra o Pato Donald na sua vida. Não, claro, a criatura de Walt Disney, mas o namorado de uma colega de Faculdade chamado na realidade Zé Manel, mas que toda a gente conhecia pelo alias de Pato Donald, ou mesmo de Donald, o Pato.

Simpático o rapaz.

Podia descrever o cerco que ele fez até chegar ao íntimo da Clarinha.
Podia, isto era, se soubesse, mas eu dessas artes não percebo nada (li um livrinho do Ovídio sobre o assunto, mas não me adiantou grande coisa) e se soubesse não era o Donald ou Ronaldo ou lá o que é que lá estava…

Sunday, October 30, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo IV
Episódio II

Que está um pouco desgostosa da sua personagem, acha-a melada, não gosta de fado e muda de canal quando os filmes chegam a essa parte.
Pois não era para ele que estava a telefonar, mas para o outro que está à sua espera em Lisboa, que a vida são dois dias e há que aproveitá-la, estava a dizer-lhe a que horas a havia de ir esperar à Gare do Oriente.

Imagine-se o desespero do rapaz.

Mas não, o mundo não pode ser assim tão cruel. Prometi à rapariga que lhe punha um final feliz à sua maneira (qualquer coisa entre uma morte anónima no terramoto de 1755 e um casamento nos Jerónimos) e pedi-lhe que se mantivesse apaixonada pelo rapaz.

Farto desta coisa de rapariga e rapaz chamo-lhes António e Clara, o que me parece inegociável.

Clara chega de facto a Lisboa, à Gare do Oriente. Ninguém a espera, pelo menos ali, que em Aveiro há ávida uma alma que anseia pelo próximo fim-de-semana.

Só, parte de Metro para a sua residência de estudante, a casa de uma tia, irmã da mãe, cujo marido só tem olhos para ela (deixei isto assim de propósito para não lixar a vida ao tio).

Aliás mal o tio pôs o pé em ramo verde a nossa Clarinha explicou-lhe por a+b que tirasse o cavalo da chuva que estava a desbotar (um breve “o tio desculpe, mas não acha que está um pouco falho de exercício, sabe, essa gordura toda pode fazer-lhe mal ao coração…” foi suficiente).

O Tó, como lhe chama a mãe, viúva, que vive para ele, partiu para outra. Vida de atleta é dura. Muito treino, os músculos não deixam de doer, a gente é que já não liga, e o chicote do treinador, e a porra do jogo no Domingo que nos correu tão mal. Mas como treina duas vezes por dia a saudade só o magoa um bocadinho nos intervalos das peladas.

Capítulo IV
Episódio III

O campeonato da II B é duro, a gente vê na televisão o que fizeram ao Futre ou ao Van Basten, ou a tantos, tantos outros, mas a II B é basicamente aquilo em doses semanais.

Sarrafada. E um tipo ficando lesionado e imprestável para o futebol faz o quê?
Num momento sonha-se que na bancada está um olheiro do Benfica, no seguinte está-se no departamento médico com um brilhante futuro no passado e a voltar para a porra da aldeia de onde se fugiu pela força do chuto.

Mas nada disso preocupava o Tó na altura. Era correr para a bola e pensar na Clarinha. Era o lume brando da visão dela que lhe aquecia as noites de Inverno.

Aqui está uma coisa com que eu não concordo. Um autor mal intencionado intervinha neste momento e punha uma strip teaser de um bar de alterne que o Tó frequentava às escondidas quando a saudade apertava a formar com ele um triângulo naquelas partes em que o dois é um número perfeitamente respeitável, ou um gajo com um Porsche a explicar à moça que há mais na vida para além de jogadores de futebol, e a ganhar pelo mesmo 3/2 o jogo da vida deles.

E depois o mesmo autor malévolo separava-os ou coisa assim, ou com um dolus menos malus punha-os a viver uma vida dupla.

Não concordo mesmo, o Tó e a Clarinha têm todo o direito de se persuadir com a fugaz ilusão do amor e passar por uns meses de intensa paixão até que a vida os separe debaixo do mesmo tecto um a olhar pela janela e o outro pela televisão e a cuidar dos putos.

Mas isso não dá um romance.

Saturday, October 29, 2005

 

Receita para um Sorriso

Deixa a cara em paz.
Abre os ouvidos para as cores da paleta das teclas do piano.
Vês agora?
Há-as azuis, amarelas, encarnadas, até pretas e brancas, violetas e cor de laranja.

Com elas podes compor arco-íris e estruturas como se desenhasses casas e pontes e praças.

Fá-lo.
Desenha as cores com os teus dedos no teclado do piano.

Deixa a cara em paz e ouve só as cores.
Vais ver que os cantos dos lábios te começam a subir, e os dos olhos te começam a descer.
Procuram-se.
Fazem uma espécie de desenho redondo à volta do nariz.

Misturas as cores.
Tocas as notas das nuvens atingidas de rubor, coradas do esforço de amanhecer, as notas dos peixes que saltam no rio ou as notas dos recantos de jardim onde as flores saltitam em frisos de colcheias.

Pois.
Vês que já estás a sorrir?
Continua, quero dizer a tocar.
Obstinadamente deixa que as teclas roxas tomem conta de ti. E as de cor púrpura, e aquelas azuis carregadas de mau feitio.
Sorri agora de esguelha, deixa que a tua parte esquerda tome conta de ti.
Carrega os tons como se o mar se enfurecesse contra as rochas, a cada onda o medo de que finalmente assalte a costa e te leve para o abismo.

Mas não.
Vais ver que acalma.
Vais ver que um azul pianíssimo te toca de novo a corda da paz.
E sorris.
E vês claramente o que nunca tinhas reparado até então:

A luz profundamente cor de laranja da primeira Gimnopédie.
E sorris.

 

Adriano e o Faraó

Capítulo IV
Recapitulando.
Episódio I

Vou num comboio, junto à janela.
Guimarães – Lisboa.
A ler um livro de Direito Penal, um daqueles temas recorrentes em direito penal, tipo o “Concurso Aparente” na versão de um autor que descobriu a pólvora.
O comboio pára em Aveiro e uma rapariga alta e morena intromete-se na minha leitura.
Visivelmente apaixonada por um rapaz de calções (devia ser futebolista, não pelos calções mas pelos gestos) despega-se dele pressionada pelo horário.
Entra no comboio e senta-se na cadeira em frente da minha.
Uma palavra de despedida ainda não dita acorre-lhe à mente e tenta dizer-lha (talvez um amo-te muito ou um não te esqueças de pagar a electricidade) freneticamente através do vidro duplo da janela do comboio que já só espera a sua palavra final para partir mas o vidro duplo é surdo e inquebrável. Tenta desesperadamente abrir a janela mas o comboio tem ar condicionado e as janelas não abrem (talvez para as pessoas não se poderem lançar à linha).
O comboio cansa-se e parte e a palavra final ficou no ar, cortada, saudosa.

Pouco depois a rapariga pega no telemóvel e fala (não tenho por hábito escutar as conversas dos outros e mesmo apurando o ouvido não conseguia).
Despede-se mais uma vez do rapaz. Diz-lhe o quanto o ama e as saudades que vai ter. Mais uma semana em Lisboa, longe dele. E como lhe sabe mal a comida sem o sal da sua presença, como o ar lhe parece reciclado, como os jardins se mostram em preto e branco…essas coisas da saudade.
Do outro lado ele recorda no tom de voz o toque suave do corpo dela, os lábios, o perfume, e diz isso tudo ao telemóvel que por sua vez o transmite ao telemóvel dela e este à própria.
O ar fica assim cheio de amor (melado para quem não for muito dado a esses estados de alma e muda de canal quando os filmes chegam a essa parte), daquele que faz os passarinhos cantar e os velhinhos ir presos.

Nessa altura a rapariga intervém.

Friday, October 28, 2005

 

Um sorriso a preto e branco

E voltamos sempre à casa partida, à casa materna.
Nascemos e morremos.
Transformamos os bilhetes de eléctrico usados em folhas mortas que dançam o vento do Outono numa manhã de Sol antes que este nasça de dentro do ventre da sua mãe, a noite, como se Satie ainda percorresse as ruas de Paris a compor músicas que são mais para ser sonhadas que para ser tocadas.
Porque das notas pretas e brancas do piano nascem sonhos das mãos dos mágicos.

Era uma vez um piano.
Que fazia parte de um sonho.
E nesse sonho ouvia-se as Gnossiennes.
Mas o piano não tinha pianista que o sonhasse.
Por isso se quedava mudo.
À espera.

E o aromático lá do telefone naquela chamada fora de horas por que esperámos tanto que pensávamos que já não íamos ouvir confunde-se com o pão primeiro da manhã, em fornadas de Brad Mehldau, de Eric Satie, do tlim do 28, antes que o aspirador da vizinha de cima, os carros a passar na rua, se portem de tal maneira que tenhamos que os pôr na ordem e chamar-lhes música urbana, e acentuá-los em estilo rock and roll.

Porque os dias são transmutações. Do chumbo das manhãs pesadas ao ouro refinado das glórias das tardes de Sol.
Mudam-se-nos as células do corpo, muda-se-nos a música, aquela que vem de dentro, a do sorriso.
Muda-se-nos o sentir.

Como tocar um sorriso?
Em Sol maior?
Um sorriso de criança?
Um sorriso em tom menor, magoado, resignado?
Um sorriso sem ser por nada?
Um sorriso que já lá estava quando o dia nasceu?
Um sorriso de mãe?
Um sorriso que se transforma num beijo, ou num esgar de dor?
Um sorriso branco de leveza?

Um sorriso a preto e branco como as teclas de um piano.

 

Ir lá fora cá dentro.

Entras e na primeira circunvolução à direita encontras uma tatuagem a dizer amor de mãe, sem data nem Guiné incluídas. O mote está dado, continuas, como se estivesses a ver quadros numa exposição e encontras um monte de fraldas, que é uma das coisas principais que nos sobram da infância.
A escola, em que os professores ensinavam em negativo. Desenhavam pedaços vibrantes de vento com giz branco em quadros pretos que nós copiávamos em papéis brancos com tinta preta.
O Cat Stevens e as raparigas de olhos doces que tinham ainda muito tempo à sua frente para se tornarem amargos.
A praia, já viste que belo é este quadro, fixado entre a “Cabana de Baba Iaga” e o “Castelo”? O calor, o Sol, as raparigas aí já tinham os olhos mais amargos, mas em contrapartida as formas mais acentuadas.
Segues a vida, encontras a dor, o amor, às vezes tudo junto e não necessariamente por esta ordem. Começas a coleccionar coisas, selos, borboletas, tampas de garrafa, tampas da vida, empregos, amigos e desamigos.
Um dia é o teu aniversário, encontras estas coisas todas arrumadas no sótão do cérebro e apetece-te mergulhar no rio do esquecimento, atravessar de margem a margem e começar de novo.
Só que mais velho.

 

Adriano e o Faraó

Capítulo III
Imaginemos uma rapariga.

Começamos por descrevê-la. Para já uma daquelas provas da existência de Deus alta e morena.
Pego nela e levo-a para dentro do computador.

Claro que isto iria causar uma certa confusão lá em casa.
Eu sou uma pessoa conservadora.
A minha casa é tradicionalista (e tem rolo da massa).

É melhor começar assim: Invento um gajo, é por exemplo profissional de seguros.
Depois é que imagino a rapariga, mas pela boca dele, pela cabeça dele, pela imaginação dele.
Deste modo o problema do rolo da massa é transferido para a minha personagem masculina.

Depois é só identificar-me com essa personagem e ter acesso à tal rapariga.

É claro que o meu profissional de seguros não vai gostar.
E a rapariga se calhar também não.
E eu escrevo o tipo a sofrer por causa dela e ele escreve-me uma carta através do agente ou do advogado ou coisa assim a dizer-me:

“Caro autor:
Não estou de modo nenhum satisfeito com o papel que foi distribuído ao meu cliente.
Sugiro as seguintes alterações:
Eu é que fico com a miúda.
O livro fica incompleto porque o autor se atira para debaixo de um comboio.

Com os melhores cumprimentos.”

Por vingança ponho o tipo a ter mau hálito.

E o advogado da rapariga por sua vez:
“Caro autor:
Com vista a possibilitar a continuação da minha participação na sua obra venho fazer as seguintes sugestões:
No fim não fico nem com o autor nem com o profissional de seguros, parto de bicicleta em direcção ao sol poente em busca da minha alma gémea.
O autor atira-se para debaixo de um comboio.”

Por vingança ponho o tipo a ter mau hálito.

Thursday, October 27, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo II
César e Cleópatra.

Tendo no capítulo anterior optado pela versão em que penso logo existo (cogito ergo sum, afinal ao fim de várias tentativas acabei por passar a latim…), tentarei agora demonstrar que isso se passa com a generalidade das pessoas.

Das duas uma: ou sou eu que estou a fazer as outras pessoas pensar e, portanto, as respostas inteligentes que me dão são fruto da minha própria imaginação, o que me deixaria extremamente satisfeito por ter a capacidade de imaginar respostas brilhantes às minhas questões parvas.

Ou as outras pessoas pensam mesmo e as respostas brilhantes são mesmo delas.

Inclino-me a optar por esta segunda hipótese uma vez que a capacidade de diálogo tem os seus limites e uma pessoa dialogar consigo própria em muitas conversas simultâneas é engraçado como argumento de um filme mas é difícil de manter principalmente para quem já ouviu comentadores desportivos.

Ou, à maneira curta, a bola é redonda.

Assentando em que as pessoas pensam cada uma para seu lado (e que os diálogos a que assisto entusiasmado sobre se foi golo ou não foi são reais, têm uma existência para além da minha própria criação) será que isso se passa com uma personagem de ficção?

Ou seja, podemos imaginar uma Ana Karenine a revoltar-se contra Tolstoi e a ir para freira em vez de se atirar para debaixo de um comboio?
Ou o Frei Luís de Sousa a fazer um manguito ao Almeida Garrett e a atirar-se para debaixo de um comboio em vez de ir para frade?

Um Sindicato das personagens revoltadas com o destino que o autor lhes quis impor? Um D. Quixote vitorioso sobre os moinhos? Sancho Panza a protestar contra a secundariedade do seu papel?

César assassinou os conspiradores e Octávio fez Cleópatra sua rainha? Não. Não podiam fugir ao destino. Não foram personagens de ficção. Não era como nos filmes, suavam e quando suavam cheiravam mal.

Nos filmes as personagens só cheiram mal por metáfora. Vê-se as outras personagens a tapar o nariz mas não se sente o cheiro (de outra maneira não havia épicos sobre a idade média).

No entanto é perfeitamente possível para um poeta provençal comparar a sua Senhora a uma rosa (mas eu acho que os poetas provençais eram personagens de ficção eles próprios).

E se eu começasse a escrever e a descrever uma personagem tão perfeita que se revoltasse contra a forma como eu a escrevo e descrevo por não ser perfeita?
É como se Santo Anselmo se começasse a devorar a si próprio começando pelos pés, ou Bento de Espinosa (cujas afinidades com o Pato Donald serão abordadas no capítulo V, se lá chegar) visse a pena de ganso com que escreveu a “Ética” começar a grasnar contra si.

Wednesday, October 26, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo I
Episódio III

O Pedro.

Não que ficasse propriamente surpreendido, o gajo era um génio. Assim para o deprimido mas um génio. Deu-se ao trabalho de nos fotografar num romance.

Comprei o livro sofregamente, como se fosse acabar e eu não chegasse a lê-lo, o que tornaria grande parte da minha vida sem sentido, é como se nunca tivesse saído o Chicago V ou o Napoleão não tivesse invadido a Rússia, a história teria sido diferente.

Por mim fiquei preso. Engaiolado num romance, perdi o meu passado, perdi a identidade, passei a ser uma personagem de ficção.

E na realidade temos a certeza de existir? Penso portanto existo? E se eu for um boneco de banda desenhada que o autor desenhou a pensar?
Isso tenho a certeza de não ser. Não penso sempre da mesma maneira e os bonecos de banda desenhada estão sempre a ter a mesma ideia sublinhada por uma lâmpada num balão de fumo, ou assumem sempre uma postura esculpida por Rodin.
Esse impressionismo da banda desenhada é incompatível com a alma humana. Não se a pode desenhar senão no passado, num passado congelado na arca das ideias.
Portanto: penso logo não sou uma personagem de banda desenhada.

Mas se se tratar de um filme de animação?
O autor pode pôr-me a pensar e a continuar a pensar. Pode dar-me a ilusão da liberdade de pensar quando ele pensa por mim, e faz correr o meu pensamento a galope, a trote, a passo com um golpe de calcanhares.

Temos de admitir que o argumento que leva a afastar a possibilidade de eu ser um personagem de banda desenhada não é aplicável à possibilidade de eu ser antes um boneco animado.

Contudo uma versão mais sofisticada do mesmo argumento dá mais que fazer:
Um filme de desenhos animados quando acaba volta ao princípio. As mesmas lágrimas e os mesmos risos repetem-se na mesma sucessão.
Ou eu não dei por nada ou então engordei nos últimos anos, o que leva a concluir ter havido uma evolução na minha vida e não uma mera repetição.
De qualquer modo poder-se-ia dizer: Mas o filme ainda não acabou, ou “Já passaste por isto mas não te lembras”.

Quanto ao filme não ter acabado era preciso que o desenhador fosse muito rápido. Quanto tempo leva a desenhar um movimento da minha mão sobre as teclas do processador de texto? Ou a desenhar no cérebro o pensamento que acabei de escrever?

A minha falta de memória, por outro lado, é notória, com sorte é só arteriosclerose. Mas daí a não me lembrar de uma vida toda?

Não me parecendo totalmente de afastar a ideia de eu não passar de uma personagem de um filme de desenhos animados francamente não creio nela. É uma questão de fé, não tenho nada contra o Pato Donald, mas não me revejo no seu sistema de ideias (quác!).

Mas a questão de fundo não é a da minha identidade. O facto de pensar leva-me a concluir para efeitos práticos que existo como ser autónomo e não como produto da imaginação de um autor literário.
Mas a liberdade de pensar? Ficará ela afectada pela minha nova qualidade de personagem literária?
Lá que penso penso, mas penso o que quero?

Tuesday, October 25, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo I
Episódio II

Já lá vão 35 anos. Nessa altura a água que deve estar a ser bebida por um turista na Suazilândia no momento em que comecei a escrever esta frase e agora já está no estômago dele em vias de sei lá o quê passava por debaixo das pontes do Rio MeKong com grande violência (a ponto de não se ter a certeza de que ainda houvesse tal coisa, pontes no rio MeKong). E havia outras guerras, e Bakunine, e o jornal “A Bola”.

E a vida parecia ter um grande futuro, o que este, o futuro, veio a confirmar, existe mesmo um futuro, pelo menos lembro-me de ter pensado isso no passado.

34 anos depois estou no Porto. Num Centro Comercial uma livraria.
Numa estante de chamada de atenção um livro: Santo Desejo, de Pedro Alçada Batista (Presença 2004).

Li e reli aquelas letrinhas pequeninas nas badanas da capa que dizem que o autor é excelente e é uma revelação e confirmei que o autor era mesmo a excelente revelação que eu conhecia.

Monday, October 24, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo I
Episódio I

Nessa altura eu tinha 15 anos e andava pensativo sobre a temática do sexo.
Bom, não valeria a pena dizer isto se se tratasse apenas daquela atitude normal nos rapazes de 15 anos, aquela idade em que naturalmente até a Tocata e Fuga em Ré menor se nos apresenta com alguma sensualidade.

Com efeito essa ainda não era ainda a idade própria para descobrir que as mulheres não foram criadas pelo seu criador em duas dimensões e em papel couché (estávamos em 1970) e que o interior da boca feminina tem uma suavidade que essa sim lembra Bach.

Era mais uma questão metafísica. Wagneriana. Fórmulas do amor cortês da poesia medieval. O sentido da vida, etc.

Por esses dias fui libertado do colégio interno em que estudava até aí e remetido para a sociedade civil com os seus perigos e tentações: Não era proibido fumar, podia usar-se roupas de cores diferentes uns dos outros, podia faltar-se às aulas sem que nos cortassem o cabelo à escovinha ou nos prendessem por um fim-de-semana. Enfim, uma balda.

Foi também naquele tempo que travei conhecimento com o Latim. Travei é o termo. E da melhor maneira possível que é estudando a língua.

O Latim como é uma língua morta tem vantagens e inconvenientes, sendo a vantagem o facto de não se queixar de ser quotidianamente assassinado em várias línguas e latitudes. Não se importa, já não lhe diz respeito, não há sociedades para a defesa da boa pronúncia do Latim. Aliás acho que não se sabe mesmo ao certo como é que se pronunciava (se é que alguém para além de Cícero chegou a pronunciar aquela coisa, ou pelo menos dois romanos coevos estiveram alguma vez de acordo em como é que aquilo se pronunciava).

A desvantagem é que como língua morta não é útil para meter conversa com estrangeiras, pelo que o seu interesse prático é naturalmente limitado.

Para nos iniciar nos mistérios da Eneida um professor já idoso. A sua indiscutível sapiência só era equiparável à sua pouca apetência didáctica.

Eu pelo menos estou em crer que era isso, não nos apetecia. No princípio do ano acantonámos as coortes em acampamentos de Inverno, escavámos latrinas, ensarilhámos os pila, montámos tendas como César e aí pela Primavera estávamos quase todos chumbados, ora por faltas ora por desistência.

O que nos permitiu obter horas de ganho em que nos sentávamos à mesa de um simpático café que ainda há por detrás do Convento de Jesus e aprendíamos filosofia uns com os outros, de uma maneira pouco escolástica.

Em geral as discussões à portuguesa são organizadas de maneira a que cada um demonstre para si próprio que os outros são burros, ou que pelo menos estão enganados.

Não era o caso. Sob o olhar meio amável meio desconfiado do Sr. Adriano, que servia os cafés apenas por ser o proprietário do estabelecimento e não porque qualquer ordem do destino o tivesse designado tabelião dos discursos, falávamos mesmo para ouvir os outros.

Friday, October 21, 2005

 

Domingo

É Domingo e os meninos jogam à bola nos relvados da manhã.
Os pais olham o rio com ar ausente, como se o rio não estivesse lá, como se a vida ainda estivesse no mesmo sítio, como se a rapariga do chapéu encarnado não tivesse passeado o balançar das ancas agarrada a um cão por uma trela há tantos anos atrás.
Os barcos quedam impávidos, como se fossem sempre o mesmo barco a olhar-me do meio do Rio com aquele olhar de partida, como se não tivessem já partido, como se eu não estivesse de facto a ver a sua memória.
A rapariga do chapéu-de-chuva não o fechou, apesar de ter parado de chover. Haverá talvez um tecto de esperança na parte de dentro da tela.
Talvez haja também um tecto de esperança no quadro da menina que corre, uma maçã na mão cheia de pecados que ainda não cometeu, na tela em que o pintor a tornou sempre hoje apesar do fluir do tempo.

 

Um acabar suave

A rapariga do chapéu encarnado saiu nalguma paragem atrás e não dei pela sua saída, só agora vejo que o lugar na minha frente está vazio.
A sombra do indicador do relógio de sol foi surpreendida pela noite que entretanto chegou enquanto admirava extasiada a beleza do crepúsculo.
Aquele café na esquina da praça foi substituído por um banco. O banco serve café aos clientes mas não dei por nada, não é o meu banco.
Que é feito das tílias do parque? Devem ter saído no Verão e só agora que é Outono reparo na sua ausência.
A memória afastou-se de mim, esqueceu-me.

Thursday, October 20, 2005

 

Lisboa

Estendo as asas ao Sol. Circundo gravemente o Rio, ganho velocidade e altura. O castelo antes lá em cima apresenta-se-me agora na sua dimensão vertical a partir do alto, como um mapa de si próprio.A cidade branca torna-se a cidade cor de telha, o Rio um fio cor de prata.As pessoas, os carros, libertaram as artérias da cidade e esta pode fluir sem percalços.

Tuesday, October 18, 2005

 

A serpente, a boneca,o relógio de sol

Era uma vez uma menina que tinha dois brinquedos, uma boneca e uma serpente...

e não sabia de qual das duas gostava mais, se da boneca se da serpente...

sendo certo que para tornar a coisa menos simples a boneca e a serpente não revelavam um grande afecto entre ambas...

quisera ver o mundo como o vêem os olhos vivos da serpente, deixar-me encantar por eles, voar nas minhas asas de sonho e correr as escalas do tempo...

ou estática mirar a água que corre nos olhos parados da boneca, a sucessão dos dias e das noites, das nuvens de alegria e de medo, nos olhos parados da boneca, pedir-lhos emprestados de modo que ao deitar-me os olhos ficassem fechados. Para sempre.

serpentear com as asas do tempo entre os corpos quentes do conhecimento, mirar o meu filho que já foi meu avô

saber estar entre o tempo, a cair suavemente, segundo a segundo, entre todos os tempos, deslizar subtil como uma referência nunca feita apenas adivinhada,

ou parar, deixar que o tempo me lamba de carícias as mãos como se Argos me reconhecesse finalmente e pudesse morrer. Descansar enquanto os meus olhos de vidro se fixam no ausente que é uma espécie de presente sem tempo

a serpente lembra-se ainda do tempo em que não havia tempo.
Lembra-se porque ela já lá estava.
Antes do tempo.
E a serpente tem memória.
E lembra-se de ter dado uma maçã à boneca e de a boneca a ter comido com os olhos ávidos, vítreos,

e de a boneca me ter dado uma fatia da maçã (ou foi a ti? não me consigo recordar) e de as coisas terem começado nesse instante, não antes nem depois, porque não havia antes e depois

mas a maçã agitava-se vermelha entre os dois, a serpente e a boneca, ao compasso do tempo recém criado, que gatinhava ainda, lento e saboroso,

levanto a boneca, os olhos abrem-se-lhe, vejo a serpente reflectida, as cores, as escamas, o sorriso, as plumas vistosas, a boneca pára, escuta com os olhos redondos a música dos desenhos que a serpente faz na areia, a música esculpida pelo vento no seu corpo esguio

os desenhos que a serpente traça na areia evocam uma ampulheta em que mergulhados na parte de cima não podemos senão ser esvaídos para a parte inferior, como lágrimas a cair numa clepsidra, lágrimas como aquelas que os olhos da boneca não vertem

lágrimas em forma de serpente de coral, lágrimas que evocam momentos de beleza tão grande...lágrimas encadeadas como num colar de poemas que se usa em dias solenes de festa, no meio das serpentes de papel, coloridas, garridas enquanto o vento do dia seguinte não as varre para o esquecimento

Monday, October 17, 2005

 

Sobre aqueles que moram na linha

As casas têm em geral o hábito de ficar sempre no mesmo sítio.
Uma pessoa pode dizer mesmo que mora na Rua Tal número 13, e isso corresponder a uma realidade orientadora. Quem me quiser ver pode encontrar-me lá.
Não os comboios.
Movem-se.
Partem e partem outra vez, dormem em estações sujas e cheias de óleo.
Com esse mover causam uma certa desorientação: Pode um cidadão dizer que mora na composição número 5437, carruagem 13, da Linha do Norte?
Por isso as pessoas que moram em comboios tendem a encarar as moradas como meios de passagem.
Eu explico: Quem se lembra de comprar bilhete para entrar em casa?
Ou bilhete de ida e volta de cada vez que chega do trabalho e vai dormir a casa?
No entanto o sentimento da viagem é um sentimento universal, é um sentimento que nos une, que faz de nós humanos, transitórios.

 

Cinzento

Talvez seja a chuva miudinha, persistente, lá fora, talvez seja uma sonata de Schubert cá dentro.
Talvez não seja nenhuma dessas coisas ou talvez sejam até todas elas juntas.
O céu azul esconde-se por detrás de nuvens cinzentas como se um poema de Sofia se escondesse nas páginas do Diário da República.
Um sabor a branco sujo percorre-me a coluna em forma de arrepio.

Friday, October 14, 2005

 

Como eu não possuo


Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço.
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse --- ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...

Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim --- ó ânsia! --- eu a teria...

Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...

De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.

Mário de Sá-Carneiro

Thursday, October 13, 2005

 

Caracóis e orégãos

A ideia de apimentar os seres humanos com orégãos tem uma origem televisiva.
Certa noite muito escura, muito bêbada, falávamos eu e o chefe de cozinha de um conhecido reality show em que o tema básico consiste em ver pessoas a cozinhar e comer outras pessoas ao vivo após uma batalha de arremesso de caroços de cereja (cuspindo-os) em que as que perdem são comidas.
Falávamos então eu e essa estrela televisiva sobre a nobre arte da condimentação quando ele me dizia que o que safava as pessoas de saber a cavalo eram os orégãos, ao contrário do que diz a tradição, que manda aplicar alecrim.
Foi daí. Depois, quando se deu a mutação e a invasão dos caracóis lembrei-me da receita.
É que ser comido é uma coisa, mas ser comido a saber mal porque o tempero não é o correcto é que não, é uma questão de princípio.

Wednesday, October 12, 2005

 

Caracóis parte II

Manuscrito encontrado numa garrafa a boiar num rio perto de minha casa.

15 de Abril.
Não sei a hora, tive de vender o relógio para me manter abrigado, mas deve ser de tarde porque já acordei há muito e estou cheio de fome.

Continuo escondido na margem do rio, debaixo de uns amieiros.
Dizem-me que os caracóis são alérgicos à folha de amieiro e por isso não se lembrarão de me procurar aqui.
Desde que o cozinheiro louco se lembrou de dar cerveja a beber aos caracóis causando-lhes a mutação genética que infelizmente todos nós conhecemos que a humanidade se esconde onde pode para escapar ao seu apetite voraz.
Dentro das casas é impossível, é o primeiro lugar em que nos procuram.
Nem no mar nos deixam. Primeiro comprando passagens depois assaltando literalmente tudo o que é barco, houve pessoas que procuraram debalde refúgio no mar. Comidas por burriés gigantescos em espectáculos atrozes essas pessoas só demasiado tarde compreenderam que tinha feito a aposta errada.
Os que tomaram aviões acabaram por ter de aterrar para de imediato serem devorados ou por cair numa morte apesar de tudo preferível.
Os que fugiram para os túneis do Metro não tiveram melhor sorte. Infatigáveis os caracóis percorreram-nos e onde encontraram um humano preencheram-no com orégãos e devoraram-no.
Sempre insaciáveis em busca da cerveja percorreram o mundo, as férteis hortas, as ortogonais cidades, as sombras das florestas, os desertos. Tomaram conta das fábricas de cerveja e produzem-na agora em doses helicoidais, o que só lhes abre o apetite.
Não sei ainda quanto tempo irei resistir, sem comida, sem abrigo, agora que o Inverno se aproxima e o meu abrigo precário se torna cada vez menos suportável.
Escrevo esta na esperança de que ainda restem humanos com capacidade de resistir aos caracóis, esperança que dia a dia diminui, choro por mim e por todo o meu povo morto por causa da sua gula.

PS: Lá fora continua um dia lindo de Sol.

Tuesday, October 11, 2005

 

Das gaivotas,dos caracóis e do Zen

Bom, o problema é que desde que a conspiração das gaivotas foi revelada (ando a ler umas coisas inspiradas por comedores compulsivos de iogurte de morango) a mudez dos caracóis não deixa de gerar perplexidades.

Por exemplo o meu amigo Terêncio, que bebe aos caracóis como desculpa para se empanturrar de cerveja começou a achar estranho o seu arrastar voraz (quando vivos) e vai daí formulou umas teorias meio filosóficas meio vagamente religiosas, entrou de ler umas coisas do Paulo Coelho e zás de se perder em contemplações do infinito pausadamente em frente a pires de caracóis e imperiais de preferência em sítios quentes para alargar a sede (o futebol é um desporto de Inverno, o caracol é um desporto de Verão).

De vez em quando alguém o aborda: «Mestre, o que é o Zen?», ou «Vai mais uma imperial?» e a sua resposta varia conforme o grau de sabedoria do consulente:
Aos do Zen convida-os a sentar-se e a oferecer-lhe uma imperial e um pires de caracóis e a meditar em silêncio junto de si.
Aos da proposta manda-os esperar que chegue um dos outros.

Como a mente humana é atrevida e por mais imperiais que se beba nunca se chega verdadeiramente ao Nirvana, um dos temas que me comunicou foi o da complacência dos caracóis em relação à raça humana (cfr. A Guerra dos Mundos, H. G. Wells, num cinema perto de si se não tiver paciência para ler o livro).
Agarrou-se a esse sujeito de meditação e ainda lá está desde Junho.
Por mim continuo agarrado à dieta de iogurte de morango parece-me ser um caminho mais directo para a ciência.

Sunday, October 09, 2005

 

A casa do Pôr-do-Sol

Não, não é como a minha, branca, baixa, virada a Sul, rodeada de um murete rasteiro que mais que isolar convida a entrar.
Também não é como aquela que a natureza me destinou, que é gótica, de tons escuros e janelas ogivais, chaminés altas e contrafortes, recantos onde espreita a hera e de onde se espera a cada momento venha um bando de morcegos levantar voo.
É diferente, é a casa do Pôr-do-sol. Quando cheguei àquela parte da cidade já lá estava. Embora de dois andares é baixa, cerca-a uma rede e um jardinzinho de roseiras, às vezes gladíolos, depende da época.
Não conheço a casa por dentro. Por fora é em geral branca, mas em certas épocas do ano o Pôr-do-Sol pinta-a de vermelho, aquele vermelho alaranjado do Pôr-do-Sol quando dá nas casas brancas viradas a Ocidente.
Morava lá uma velhinha vestida de preto, que quando se chega a certa idade os lutos sucedem-se sem intervalo. Devia morar lá, pelo menos, todos os dias a via a cuidar do jardim, das rosas, dos gladíolos, regava, podava, fazia as coisas que as pessoas que costumam cuidar dos jardins costumam fazer.
As roseiras são uma questão de idade, não sei se quando era nova a casa tinha plantadas crianças a brincar no pátio que agora é jardim em vez de flores e se a velhinha que então era nova esperava alguém que chegava do trabalho ao entardecer.
A certa altura deixei de a ver, à velhinha, a casa ficou vazia com aquele ar desabitado que as casas desabitadas ganham por simpatia para com os que partem.
De vez em quando ainda lá vai, cada vez mais velhinha. Terá ido morar para um Lar.
Sei que a velhinha está viva porque os vidros da casa estão intactos e não há como as crianças e as pedras para saber bem se uma casa tem dono ou se morreu.
Os gladíolos nunca mais os vi, nem aquelas flores mais delicadas que precisam de água todos os dias. Mas as rosas ainda lá estão.
Enquanto vir as flores sei que a velhinha está lá ou noutro lado qualquer. Quando morrerem saberei que a velhinha desistiu do seu combate pelo jardim, partiu provavelmente para um jardim de pedras de que outros tomarão conta.
A casa por sua vez dará lugar a outra, também virada ao Pôr-do-Sol, avermelhada de vez em quando, talvez bonita, talvez feia, talvez com crianças a brincar em vez de flores no jardim, talvez com uma mulher no pátio à espera de um homem vindo pelo Pôr-do-Sol.

Saturday, October 08, 2005

 

 

A Clear Midnight

A Clear Midnight
by Walt Whitman


This is thy hour O Soul, thy free flight into the wordless,
Away from books, away from art, the day erased, the lesson
done,
Thee fully forth emerging, silent, gazing, pondering the
themes thou lovest best,
Night, sleep, death and the stars.

Friday, October 07, 2005

 

En Grêves

O meu Sindicato (e concedo à direcção a graça de pensar que o fez contra vontade) marcou uma greve.
Os motivos são legítimos de um ponto de vista sindical.
A questão é que a minha profissão exerce poder. E o poder é uma ilusão, existe na cabeça das pessoas, existe enquanto for reconhecido. O poder que certas pessoas exercem advém-lhes do facto de as outras pessoas lhes reconhecerem autoridade. E de elas se reconhecerem a si próprias como fonte de poder.

Por isso as becas e as togas.
Por isso a incongruência das greves.
Por isso a vontade de não ser reconhecido como fonte de poder.
Por isso a greve não pode vir a resultar senão numa profunda derrota.

De qualquer modo, sendo a greve legítima do ponto de vista sindical, pois visa manter aspectos salariais, é difícil para mim, que sou delegado sindical, não acatar a decisão que foi democraticamente tomada.

 

O Sonho e o Anjo, parte XI e última

Há qualquer coisa no meu olhar que faz o anjo recuar.
Solta os olhos dos meus e foge.
Tenho medo, procuro fugir também.

Fugimos um do outro, nunca mais o vi, nem sequer tenho coragem de o procurar.
No entanto de vez em quando, mesmo agora quando escrevo, sinto o seu olhar por cima do meu ombro e o perfume da sua respiração junto à minha cara inebria-me.

Thursday, October 06, 2005

 

Efeitos colaterais do iogurte de morango parte IV, a Ressaca

É meu esse corpo que se retorce sem sossego na cama?
Que mau sonho o faz torcer-se, que tempestade o atira contra as rochas e o faz gemer?

Aos poucos como sombras pequenas as moscas começaram a levantar-se das trevas. Zumbem, ao princípio um leve zumbido de fundo, como um mal que apenas se anuncia, depois com um som poderoso a encher a terra e os corações dos homens de medo.

Unem-se em bando.
Todas das mesma cor triste, todas de acordo, a cantar a mesma nota constante.

É meu esse corpo que jaz aí em baixo, arquejante, sem saber como sair do labirinto que ele próprio cria?

Juntas dirigem-se em espiral para o céu.
Que astro malvado as inspira e as atrai?
A lua vermelha coada pelo fumo dos incêndios?
Sírius?
Um cometa animado de dor e desprezo?

E voltam. Cada vez mais feias, cada vez mais sujas.
Pousam no meu corpo inerte e desaparecem.
É a tristeza que finalmente me invade e aquieta o corpo molhado em suor.

Acordo.
Ao despertar a memória do que se passou foge-me como uma onda que se retrai depois de assolar a areia da praia.
Corro atrás dela e tento agarrá-la com as mãos, mas não consigo.

Vai-se, e com ela vai-se a noção de que se passou alguma coisa importante, mas não sei o quê.

 

Porque todos os corpos são percorridos por canais

Porque todos os corpos são percorridos por canais, secções tubulares, por onde flúi a energia.
Assim os corpos macios assim as cidades que são corpos duros mas não inflexíveis.
Nascem, morrem, crescem, enriquecem e empobrecem.

Assim os edifícios.
Recordo aqui a obra de Will Eisner "The Building" sobre a alma dos edifícios urbanos, seus amores,suas dores, seus sons e crimes.

E não penses que o buraco urbano é um privilégio alfacinha.
Em qualquer cidade de província lá os encontras: Os catterpillars a barrar as ruas com um ar marcial, como num golpe de estado, o pó, os trabalhadores com uma raquete de ténis semaforizada em tons de verde e encarnado como se fosse um Sporting-Benfica transitário, o pó outra vez, os sinais a dizer "desvio" (só que na província diz-se desvio e não desviu como em português padrão) os canos de água ou de electricidade ou de gás ou de outra forma de energia qualquer a espreitar, encolhidos a um canto à espera de vez e a avisar o transeunte: Vês, não estás aí a apanhar seca (e pó) para nada, estás à espera de que eu seja colocado, que vá, quem sabe, levar a TV cabo a tua casa, ou o gás natural a casa da tua mãe, ou uma aguinha mais fresquinha a casa daquelas meninas que a tua patroa finge que não sabe que tu encontras lá no bar de alternas (ah, a província, as tias de Braga, a decência...).

E as obras de remodelação cá dentro.
Quando pensamos que estamos a ficar cinzentos e de repente abrimos uma palete de emoções vivas como uma caixa de lápis de cor Caran d'Ache.
E as dores de parto das ideias novas e das sensações novas.
São os tubos a deixar passar a corrente da energia.

 

O Sonho e o Anjo parte X

Entro na caixa do elevador.
Por cima de mim, à minha frente, em baixo, tudo é céu estrelado.
Mergulho para as estrelas e a caixa do elevador acelera mesmo sem eu ter carregado em qualquer comando.
Desce.
Desce cada vez mais rápido e em breve deixa de ser uma caixa de elevador para se transformar em escada.
Os degraus da escada desfazem-se por debaixo de mim e eu deslizo, caio.
Tento desesperadamente agarrar-me mas não consigo, vejo lá ao fundo o poço negro que me espera, de boca aberta, horrendo, os dentes afiados, sem olhos, apenas com fome.
Paro de respirar e uma dor amarelada escorre-me pelos brônquios.
Não sinto sequer o suor que me alaga.
De repente o poço ilumina-se, a rampa deixa de descer e estou numa câmara clara. Embora não tenha água eu nado, não sei onde fica a superfície mas não me falta o ar. Respiro, oiço a minha respiração agora profunda, e vejo-o.
Finalmente vejo-o. Está à minha frente. Paro de nadar e estou quieto para que qualquer movimento meu não possa ser mal interpretado e o faça fugir.
As asas negras abertas, os olhos negros fixos nos meus iluminam de escuro uma face clara emoldurada no negro do cabelo.
Um sorriso estende-me a mão.
Quase que lhe toco mas recuo, paralisado.
Um anjo.
Um anjo de asas escuras.
Um anjo de asas escuras que me estende a mão e me dá a paz.

Wednesday, October 05, 2005

 

O Sonho e o Anjo parte IX

Não esqueço.
Asas negras.
Procuro a minha sombra hoje num labirinto.
Como um jogo de TETRIS só que em tons diversos de cinzento, mais ou menos cinzento.
Não o vejo o murmúrio com as asas negras a destacar-se do cinzento de fundo.
As várias peças caem nas suas diferentes formas e barram-me os caminhos, prendem-me os braços, quero respirar e não posso, sem dar por ela subo de nível e os tijolos emparedam-me cada vez mais rápidos.
Game over.
Adormeço agora só com um fim, o de procurar a explicação dos sonhos nos meus sonhos.

Tuesday, October 04, 2005

 

Efeitos colaterais do iogurte de morango parte 3 (a que trata de sementes, penas, folhas secas, ventos solares e outras curas naturais)

Era uma vez um corpo que se encolhia virado para o Sol.

E o vento soprava sementes de dentes de leão por todo o universo.

Não umas sementes de dente de leão quaisquer, ramalhudas e estreladinhas, mas umas de cores berrantes, outras prateadas e outras douradas.

Levadas pelo vento as sementes de dente de leão voavam. E cobriam a Terra com o seu manto colorido.
O corpo desdobrava-se na direcção do Sol, abria os braços para ele, inspirava o ar e com ele a energia toda do mundo, devagar.

As sementes de dente de leão espiralavam para o Sol enquanto o corpo dilatava, enchia como um balão, pairava na atmosfera, via o cortejo das cores.

Agora como a águia, no mesmo sítio, a saborear o vento sob as asas, o vento a acariciar as gotas de suor no peito.

E as sementes chegaram ao Sol. Acharam que este era parecido com um enorme olho e sorriram-lhe. O Sol pegou-as nas mãos e soprou-as para a Terra, nas suas cores variadas.

Umas caíram no mar e ficaram peixes, e outras nos cabelos dos anjos e ficaram pétalas de rosa, outras caíram em pomares e nunca se tinha visto tantas frutas e tão boas.

Sobrou no fim só uma semente de dente de leão, uma de cor castanha. O Sol olhou para ela e sorriu, chamou-lhe folha do Outono e fê-la cair.

O peito cheio de ar começou a esvaziar-se. Os dedos primeiro, depois a mão toda, o braço, a cabeça, o corpo todo encolheu-se, lentamente, como uma folha seca a viajar às costas da brisa leve.

 

Um pouco de Rio

Nessa manhã o Rio acordou por níveis.
Normalmente acordava à tona de água mas desta vez os sonhos conduziram-no a acordar em patamares.
Os barcos, é claro, ressentiam-se.
Havia uns que se tinham deitado juntos, lado a lado e agora espreguiçavam-se para um lado e para outro a admirar as ausências dos companheiros da noite passada até os encontrarem em vez de ao lado em cima ou em baixo, conforme o patamar em que tinham sido colocados.
O nível da água deixava assim de ser uma expressão única, havia barcos no nível 4, no nível 5, e havia acima de tudo que ter muito cuidado na navegação por causa dos degraus.
Não deixando de ser perigosa a situação apresentava o seu encanto na desconformidade com o destino. Pois não é verdade que é o destino da água é o plano?
Uma torre, por exemplo, pode conceber-se não como dirigida ao céu mas como dirigida ao interior da terra, não perde por isso o seu carácter vertical, passa a ser o acesso por elevador ao parque -2.
Mas um rio em que a água deixa de se preocupar em acamar-se no mesmo nível é algo de surpreendente. Assim como se o tempo começasse a andar num sentido para algumas pessoas ou nalguns lugares e no outro sentido para outros. Ou até sem sentido ou sem constância.
Imagine-se uma hora a durar mais ou menos conforme estivéssemos na Patagónia ou na Finlândia, ou o regresso à idade média na Suíça.
Felizmente por enquanto apenas a água do rio se revoltou contra o destino e decidiu pôr os barcos a vogar uns por cima dos outros.
No próximo capítulo analisaremos a composição química da água do Rio no sentido de determinar se existe algum factor patogénico que tenha motivado a desnivelação.


E a surpresa dos peixes ao saltar fora de água e ficar dentro de água na mesma, e a dos banhistas a mergulhar e ficar à tona, dar duas braçadas e ver a superfície três metros acima.

Procurou-se a explicação numa descarga de iogurte de morango que tivesse sido inadvertidamente vertida num afluente mal-encarado mas não se demonstrou que o iogurte de morango tivesse este efeito e não se encontrou evidências de qualquer descarga ou de qualquer composição anormal da água do Rio.

A questão não era portanto, química.


Talvez o Rio tivesse ganho consciência e se abalançasse a ter o seu próprio querer.
Como uma criança a gatinhar os primeiros movimentos e as primeiras descobertas do que fica por detrás da porta o Rio procura desafiar o equilíbrio.
Desequilibrar-se, transmutar-se, fazer da água vinho, do chumbo ouro, do imutável a mutação permanente.
Quando nada permanece estável o degrau na água não nos deve surpreender.
No entanto surpreende de tão habituados que estamos a pensar que ficamos sempre na mesma.

Essa a primeira lição do Rio: Manter a mente em desequilíbrio como condição de manutenção do equilíbrio mental.
Mantendo o movimento o ciclista não cai.


 

Solidão

Um longo trecho de Erik Satie a ecoar dentro das paredes do cérebro como um sopro baixinho.Um cadeirão e um livro, mais a vontade de o ler.Uma tisana bebida quente enquanto o seu calor me faz companhia, por um momento.Um cheiro a recordação dentro da memória do computador, um texto antigo, ainda pouco trabalhado.Um rosto meio encoberto pelo nevoeiro com que por caridade o tempo envolve o que nos dói.Um apressar do passo primeiro sem direcção, depois com um sorriso forçado de determinação. Arrasto-me de ombros levantados até que o sorriso seja verdadeiro, apetece-me fazer qualquer coisa, oferecer-me um presente, apanhar um autocarro e seguir nele aos solavancos até à última paragem, para ver se há de facto uma última paragem dos autocarros

 

Arco Íris

O deus do Sol e a deusa da Água encontraram-se no céu.

Viram-se e amaram-se.
Tiveram a certeza de que cada um era a parte certa do outro, a que faltava, a melhor, e juntaram-se a dançar um bailado cósmico.
Amaram-se numa dança lenta, com circunstância, como convém a deuses tão altos como o deus do Sol e a deusa da Água.
E dançavam a música das estrelas, que olhavam para eles e lhes sorriam bênçãos.

O deus do amor agradecido com o culto que lhe prestavam deu-lhes a cor.

A cor vermelha quente da paixão divina, a cor azul fria do afecto silencioso, o branco conjugado da pureza de um amor tão grande como o Sol, tão límpido como a água.

 

O Eclipse

Se não tivessem morto os magos teriam sabido antes.
Mas queimaram-nos em fogueiras grandes em que o povo aplaudia embriagado os gritos de dor.
E com eles queimaram-lhes os livros, o que foi um segundo erro.
Cegaram os que sabiam ler nas estrelas, tiraram-lhes a luz. Disseram que não a mereciam.

E o tom laranja das fogueiras, o crepitar, os gritos, o vinho, o medo, o sexo acicatado pelo cheiro do sangue a correr rápido atrás de cada esquina.
Foi assim que mataram os magos que previam os eclipses.

O Sol abraçou a Lua no seu bailado celeste.
Abriu as suas asas e cobriu a Terra de trevas.

Um sussurro de alerta correu as vozes na cidade até se transformar em gemido de desespero.
Que se acorresse às armas mandou o Imperador, que se pegasse nelas e se desse combate à noite que vinha assim a interromper o dia fora das horas próprias e da ordem natural das coisas.
Às armas, disse ao seu condestável, que se acorra às armas, que de cada um se faça um soldado, que se aguente a pé firme, que se invista, que se mate e que se morra, que se levante o povo.

E o condestável aos seus sargentos:

Vão! Levantem o povo, arranquem os lavradores da lavra, que a façam as mulheres, tirem às mães os filhos de que por baixo do nariz haja já uma sombra, se chorarem tirem-nos na mesma, se não chorarem amarrem-nos, que esses são os que fogem.

E os lavradores pararam de lavrar, o peso da lavra caiu sobre as mulheres, ele todo.
E as mães choraram com o medo espelhado nos olhos dos filhos adolescentes como flores cortadas antes de tempo a voz a engrossar com a pressa pois há pressa em acorrer ao combate.

E os sinos tocavam a rebate, pregões atroavam no ar:
Às armas.
Corram às armas.
Corriam os sargentos a juntar as milícias.
Que nenhum homem válido fique em casa.

E os inválidos sentiam a vergonha de nem para morrer os quererem.

E os outros o medo.
Corriam para espantar o medo.

Que não fique ninguém nas oficinas da cidade, nas obras, nas vendas, corram, larguem os martelos, os cinzéis, as batas, gritavam os sargentos.
E ninguém ficava, corriam, trocavam os instrumentos por outros, os da morte, formavam fileiras, punham um ar garboso para as namoradas os admirarem com o seu porte marcial, e as senhoras que acorriam às janelas a vê-los passar, de cima, admiravam-nos, calores secretos inflamavam-nas na presença dos que iam morrer.

Corram, gritavam os sargentos para os amantes, e as raparigas ficavam sem par como se as deixassem a rodopiar uma valsa sozinhas, uma daquelas valsas solitárias das bailarinas de porcelana nas caixas de música.
Dos bordéis do porto saltavam os clientes, expulsos pelos sargentos e pelas raparigas que já pagas se aliviavam assim do seu peso, das suas barrigas e do hálito a vinho barato, que a guerra não é só tristezas.

Que parem de beber, gritava-se, e das tascas estremunhadas saíam em passo trôpego mais defensores do Império.

O condestável olhou as suas tropas mergulhadas na penumbra, os mais gordos à frente, os lavradores com as mulheres nos campos por eles, os marceneiros com a ilusão de serem admirados pelo seu garbo, os adolescentes colhidos dos braços da mãe, os soldadinhos de chumbo, os alheios a isto tudo mas apanhados no sítio errado na altura errada, dispô-las em decúrias, em centúrias, em legiões, espalhou-as na planície antes banhada pelo Sol em ordem de batalha.

E ordenou-lhes que gritassem, que exigissem ao Sol que se mostrasse, que saísse de por detrás da Lua, que deixasse de se esconder e os banhasse de luz e calor como era do seu direito.

E gritaram, gritaram tanto que o Sol apareceu novamente, recolheu as asas e afastou as trevas.

O Imperador reconhecido mandou empalar uns magos que ainda sobravam das anteriores levas.

 

O Sonho e o Anjo parte VIII

Não esqueço.
Asas negras.
Procuro a minha sombra hoje num labirinto.
Como um jogo de TETRIS só que em tons diversos de cinzento, mais ou menos cinzento.
Não o vejo o murmúrio com as asas negras a destacar-se do cinzento de fundo.
As várias peças caem nas suas diferentes formas e barram-me os caminhos, prendem-me os braços, quero respirar e não posso, sem dar por ela subo de nível e os tijolos emparedam-me cada vez mais rápidos.
Game over.
Adormeço agora só com um fim, o de procurar a explicação dos sonhos nos meus sonhos.

Monday, October 03, 2005

 

O Sonho e o Anjo parte VII

Asas negras.
Não me posso esquecer disto.

Sunday, October 02, 2005

 

Efeitos Colaterias do Iogurte de Morango parte II, A Laranja

O Sol em doze gomos.Verdes são os campos, da cor do limão:No tempo de Camões colhia-se a fruta verde para os ladrões não a roubarem?Os campos eram amarelos?Já havia iogurte com sabor de morango e por causa disso às vezes as cores mudavam-se um pouco para o lado como se estivessem apertadas no arco-íris?Quero eu dizer, por exemplo: Tangerine Trees, Marmalade Skies, somebody calls me, I answer quite slowly, a Girl with Kaleidoscope Eyes. Ou versão Camões: Os limões verdes, as ovelhas que têm pasto nos campos da cor do limão são azuis?Consegues ouvir o som do azul a esta distância?

 

Efeitos Colaterais do Iogurte com sabor a Morango parte I

Comi um iogurte líquido de sabor a morango. O céu iluminou-se, as gaivotas, umas azuis, outras cor-de-rosa, cantaram em coro, lentas, o samba da bênção.

Estou à procura de iogurte com sabor a kriptonite, o super iogurte, é por causa das gaivotas.

E as gaivotas agradecidas chilrearam-me o hino nacional. Numa versão a seis vozes, em ¾.

A um toque da flauta mágica Tamino pôs os carros a dançar na EN 125. Fê-los desenhar os passos da dança no asfalto em linhas de pauta que só o Inverno apagará.

Depois, quando o flautista de Hammelin acordou do seu sono sem sonhos tocou por sua vez a flauta e conduziu os carros para a Ria.

 

A Catedral Submesa

O Rio navega suave num movimento lento.
No seu caminho um pequeno degrau fá-lo incompatibilizar duas notas, como se fosse uma queda de água sem rumor, sem redemoinhos, sem carrosséis de espuma sem nada, só com uma descida breve, como um declive.
Nada até aí no seu percurso fazia adivinhar o intervalo. Seguira sempre, como se estivesse adormecido entre os braços confortáveis das margens.
E agora aquilo, um sobressalto. Leve, sim, mas um sobressalto.
A música resultante desse movimento perturba. Uma angústia subtil nas mãos do pianista faz temer qualquer coisa que não se adivinha no correr da água.
Em sobressalto aproximo-me, mergulho no Rio, espreito por debaixo do seu manto, procuro no seu leito a causa da distorção.E é agora que a oiço, no seu estilo gótico dirigida a um céu que mora debaixo de água, a Catedral Submersa.

 

Avenida do Pôr do Sol

Na Avenida do Pôr-do-sol uma rapariga espreita de uma janela semi-cerrada.
Espreita o Sol que se põe e o movimento da Rua. Pouco, que é Agosto e o calor encerrou a cidade para férias.
Há uma ânsia no seu olhar, como se fosse possível ver para além do Pôr-do-sol e dos carros que passam em baixo sem pressa, como se tivesse pressa de chegar a um destino que ainda não há.

No calor da noite o rio reflecte o olhar das luzes da cidade, agora cheias de melancolia, devolve-nos os olhares indiscretos com que o perturbamos, devolve-nos a melancolia e diz-nos: - «Toma lá, é tua. Guarda-a junto de ti.»

Ainda falta tanto para a madrugada.
Passeio o olhar pelo leito da rua, do rio que fica entre as casas e que o calor do dia aqueceu, onde os sonhos morrem afogados em cada Verão, mas nada acontece na água parada do alcatrão.
Às vezes um carro procura alguma coisa com os faróis, os olhos de um gato brilham no escuro.

Mas mais nada.

 

Avenida do Pôr do Sol

Na Avenida do Pôr-do-sol uma rapariga espreita de uma janela semi-cerrada.
Espreita o Sol que se põe e o movimento da Rua. Pouco, que é Agosto e o calor encerrou a cidade para férias.
Há uma ânsia no seu olhar, como se fosse possível ver para além do Pôr-do-sol e dos carros que passam em baixo sem pressa, como se tivesse pressa de chegar a um destino que ainda não há.

No calor da noite o rio reflecte o olhar das luzes da cidade, agora cheias de melancolia, devolve-nos os olhares indiscretos com que o perturbamos, devolve-nos a melancolia e diz-nos: - «Toma lá, é tua. Guarda-a junto de ti.»

Ainda falta tanto para a madrugada.
Passeio o olhar pelo leito da rua, do rio que fica entre as casas e que o calor do dia aqueceu, onde os sonhos morrem afogados em cada Verão, mas nada acontece na água parada do alcatrão.
Às vezes um carro procura alguma coisa com os faróis, os olhos de um gato brilham no escuro.

Mas mais nada.

 

O Sonho e o Anjo parte VI

Entro numa casa em ruínas. Atrás de mim um prado imenso sobre o qual pendem ameaçadoramente nuvens de tempestade. Tudo é cinzento.
A casa está insistentemente limpa.
Vejo uma caixa que ainda agora não estava lá.
Não quero que a caixa se abra, lá dentro mora o medo.
Mas abre-se. E saem de lá coisas repugnantes que se dirigem a mim, patas de aranha peludas, porcarias vindas de outro mundo que começam a trepar por mim acima.
Uns olhos particularmente maus fixam-se nos meus e prometem-me coisas horríveis.
Novamente o restolhar, só vi umas asas negras, uma corrente de ar, uma força que me prende pelo peito e que me acorda, suado, aturdido.

Saturday, October 01, 2005

 

O Sonho e o Anjo parte VI

O que quer que fosse não se limita a observar-me, agora quer que eu tenha conhecimento de que está lá, de que há uma parte consciente dos meus sonhos que quer falar comigo, dizer-me qualquer coisa.
Mergulho na escuridão e no sono, depois procuro uma imagem diferente, uma cor, uma nota aparentemente fora do tom, ou um movimento.
À minha direita um ligeiro arrastar como se fosse para chamar a minha atenção.
Volto-me e já lá não esta, mas um vazio pronuncia um movimento recente, uma corrente de ar, ou uma perturbação na superfície da água em que nado.
Volto-me outra vez, em todas as direcções.
Em todas elas recebo impressões de que esteve ali mesmo agora.
Que sombra é esta que chama a minha atenção e depois se esconde, que me algema e transforma as algemas em simples recordações de modo a que a água do tempo as lave da minha memória.
E é tão difícil recordar.

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