Tuesday, November 29, 2005

 

Construtor de momentos, olhares

Os olhos.
Os olhos não se cruzam, emitem raios de energia que embatem uns nos outros criando formas novas de energia.

Por exemplo um trocar de olhares perfeito é aquele em que sem querer duas pessoas formam uma coluna só de energia que se encontra a meio caminho e produz efeitos luminosos, pequenas estrelas brilhantes, coloridas, que refluem, entram pelo nervo óptico de cada uma descem e tocam a campainha do telefone do coração.

A partir daí a vida passa a ter outro sentido.

Mas não é isso que se passa na generalidade dos casos.

O olhar, a coluna de energia claro, as estrelinhas também, mas quando estas refluem na direcção do coração de um podem ir ter ao fígado de outro.

A isso se chama um ligeiro desencontro.

A consequência do ligeiro desencontro é o fenómeno do curso do rio. Os pequenos desvios a montante são da dimensão de estuários a jusante.

Nos olhos de uma pessoa a franqueza pode ser uma coisa, um sentimento, uma devoção, nos olhos de outra que com que troque olhares podem as devoções ser a deuses diversos.

Não há como nas estradas sinais que digam este olhar é prioritário, ou é de sentido obrigatório, não há nessas coisas de olhares semáforos que nos advirtam amarelo ou nos façam parar.

Só os olhos, negros como poços que dessedentam, que formam túneis em que se crê ver o interior da gente, azuis como os lugares comuns que se costuma dizer sobre olhos azuis, oceanos, cor do céu e essas coisas.
Olhares, que são as emanações dos olhos, que se destinam a ser vistos por outros olhos e a construir fórmulas químicas.

Por um olhar teu se perdeu a minha alma.
E a tua, perdeste-a no mesmo lugar onde eu perdi a minha?

Friday, November 25, 2005

 

Construtor de momentos, solidão e reencontro

Às vezes a alma vagueia, passeia dentro do corpo como se este estivesse vazio, como se fosse só uma carruagem daquelas do último metro.
E o portador dá por isso.
Chama-se a esse estado solidão e em casos extremos consegue afectar o alvo da sua distinção mesmo no meio da assistência de um jogo de futebol, no intervalo do cinema a que se vai só com a companhia de um saco de pipocas e de uma Coca-Cola.
É nessas alturas em que até o par de raparigas que foi ver o filme e cochicha talvez disparates talvez pensamentos profundos capazes de mudar o rumo da filosofia ocidental uma no ouvido da outra se apresenta como um grupo de pessoas felizes e até interessantes.

Nunca se está inteiramente só. Estamos sempre connosco e connosco estão as nossas memórias, as pessoas que em tempo nos fizeram companhia e não nos deixaram nessa altura cair em solidão.

Uma sombra de curva de anca, um sorriso claro assaltam de mansinho os pensamentos e tornam-nos penosos. Assombram-nos.

Era um daquelas alturas.
As sombras do passado ainda o assustavam.
Fora usado e deitado fora.
Posto no vidrão do esquecimento.

O problema era que o vidrão devia estar avariado porque não conseguia esquecê-la.
Os anos do casamento tinham sido uma sucessão de discussões sem sentido provocadas por uma mulher que o triturara com ossos e tudo, que tinha o gosto sádico de o ver sofrer, que se sentira amada e por isso o desprezara por completo.

Estava na altura de passar à fase seguinte.

A fase seguinte vem sem se dar por ela. Envolve o sujeito sem que este faça um esforço consciente nesse sentido.
Está aqui e logo está ali.
Assim.

Chamo-me Manuel Ribeiro e acabo de chegar.
Vim de longe, nunca aqui estive antes.

Não mudei de vida, só mudei de lugar.
O cinema sozinho, a Coca-Cola e as pipocas, jantar sozinho como combinei comigo mesmo. Admirar a juventude das miúdas da fila da frente no cinema.

Regressar a casa, dormir com os fantasmas, ser acordado por estes.
Trabalhar é sempre uma boa terapia para estados de alma incompleta.

Mas de que servem os longos períodos de trabalho, esticados para além do razoável, de que serve tingir os sons da noite de Coltrane se não temos a quem mostrar as cores?

É como ir ao aeroporto ver os aviões partir e ficar no solo.
Solo.
La solitude.

Há no entanto pessoas que logo da primeira vez que as vemos temos a sensação de as querer ver muito mais.
Não sei, uma forma de colocar o nariz, qualquer coisa na voz, na posição das mãos?
Podemos andar anos sem ver uma dessas pessoas e de repente lá está.
Onde aliás já estava, nós é que não sabíamos.

Foi ao descer as escadas que a coisa começou.
Ela vinha a subir no sentido contrário.

Desceu dois degraus, cruzaram-se, fingiu que não dava por ela, que por sua vez não deu por si de certeza, parou, virou-se para trás e em vez de dar de frente com as ancas foi antes com os olhos dela que o fitavam a si.
Coraram ambos e viraram-se para a frente um a descer outro a subir umas escadas que subitamente tinham deixado de fazer sentido.

Wednesday, November 23, 2005

 

Construtor de Momentos

O construtor de momentos soprou uma imagem de céu.
Disse a uma nuvem que se disfarçasse de deusa e orientasse os destinos dos homens.
A outra que assumisse a forma de animal, não de um animal qualquer mas a de um cão ou raposa, carnívoro de pequeno porte, de orelhas alçadas de modo a que os homens se sentissem vigiados.
A outras ainda pediu-lhes que se mantivessem em formas indistintas para que os homens tivessem de adivinhar quem eram e pudessem discordar sobre os seus poderes.

Tuesday, November 22, 2005

 

No Princípio

No princípio era o Rio.
O Rio estava parado, não corria.
Nem sequer se pode dizer com propriedade que o Rio estava parado, por falta de referências.
Para se estar parado ou uma coisa diferente de parado é preciso que haja referências espaciais que permitam dizer: Está aqui, está ali, está nesse lugar.
E é preciso que se possa dizer: Agora está em tal sítio, antes estava noutro. São referências temporais.

Estas também faltavam porque no princípio só o rio era e estava, não havia portanto antes nem depois nem longe e perto.

Não havia comunicação porque não havia ninguém a quem dizer.

O Rio teve uma ideia e criou as margens.
Começou a correr entre elas.
Mas não tinha direcção, não havia ainda sido criado o nascer e o pôr-do-sol, nem sequer o Sol.
Faltava-lhe a noção de se deslocar porque não havendo Sol os dias não se sucedem, permanecem, não há Verão nem Inverno, não há calor e fresco, nada nasce e nada morre.
Pode haver onde mas não há para onde.

O Rio criou então o Sol e começou a fluir entre as margens de montante para jusante, enterneceu-se com o nascer do Sol de tal modo que resolveu criar sombras.
Plantou árvores ao longo das suas margens que lhe deram as sombras.
As coisas começaram a ter um antes e um depois. Um perfeito, um imperfeito e um mais que perfeito.

Por entre as margens do Rio corriam alcateias de lobos, enormes, olhos flamejantes que procuravam as raparigas incautas que tomavam banho nuas junto às margens.

E criou o vento, o que fez com que a superfície do Rio se quebrasse em pequenas rugas cruzadas que reflectiam cada uma a luz do Sol como se o fizessem num pano de xadrez de muitas cores.
E desses bocadinhos de Sol reflectido nasceram flores.
Amarelas, azuis, brancas, vermelhas.
Algumas juntaram-se aos pares e compuseram borboletas com que voaram para longe e foram pintar o céu de estrelas.

E o Rio criou as pontes que unem as margens, as casas que sobem brancas desde a água ao topo das colinas que o bordejam, os barcos que permitem que o vento fenda a água no seu caminho.

No meio da savana, junto da margem esquerda do Rio, uma criatura levantou-se e perguntou-se porque estava de pé.
Foi o começo das perguntas.
Também foi o a partir de das criaturas da savana.
Antes não havia, agora já havia.

De dia caçavam, de noite olhavam as estrelas. As noites eram solitárias e por isso o Rio criou a Lua, a que ilumina a noite, a que faz brilhar os olhos dos gatos. Passou a ser possível escrever Sonatas ao Luar.

Quando dormiam a serpente passava entre elas, lambia-lhes os corpos com as escamas do ventre, deixava um rasto vermelho que a manhã não apagava.

Os da savana viram as pontes, as casas, os barcos e ocuparam-nos.
Abriram grandes papagaios de papel e voaram para longe, para sítios que ainda não havia mas que passaram a existir quando lá chegaram. Pintaram esses sítios de cores de gratidão ao Rio e ao Sol, tiveram filhos e pintaram os filhos da cor do arco-íris, deram-lhe moinhos de vento e deixaram-nos correr à vontade com eles.
Banhavam-se no Rio, envelheciam e morriam com um ar feliz, com um moinho de papel na mão a rodopiar movido pela brisa.

O Rio criou os anjos. Deixou-os vaguear por entre os da savana que agora eram os da cidade. Disse-lhes que fossem e que tomassem conta deles, que lhes ensinassem a ouvir música, a atravessar as ruas, a estudar geometria, a andar de bicicleta e a filosofar sobre a origem do Universo.
Entre o bater das asas dos anjos o Rio ouvia o riso feliz dos da cidade. O rio ficava contente.

Criou aquele mundo e criou outros, fantasmas daquele, tão fantasmas daquele como aquele era fantasma deles.
Numa noite de Verão mais curta que as outras esses mundos cruzavam-se, os das cidades de um e do outro lado encontravam-se e como nunca tinham visto criaturas mais belas antes na vida trocavam de mundo por essa noite. De manhã tudo voltava ao normal sem memórias do que acontecera a não ser um ligeiro cansaço com traço a saudade e uma marca vermelha muito pequenina escondida por detrás da orelha direita.

Foi o chacal. Escondeu-se entre os canaviais das margens e planeou a vingança. Vingança de quê?
Porquê, o ódio precisa de outra razão de ser para além do amor a ele próprio?
Odiava o Rio, os da cidade, os lobos que trotavam livres junto das margens, as raparigas nuas, as serpentes, os papagaios de papel. Odiava de um ódio puro e sem mancha, só feito de rancor.

Entristecia-o ver o Sol e a Lua. Invejava a sua felicidade.
A Lua era demasiado feminina para que pudesse tocar-lhe, cobiçava-lhe as suas formas redondas mas temia-a por causa do poder que se ocultava naquele ventre macio.
O Sol.
Teria de ser o Sol a desaparecer, a deixar de fulgurar para que o brilho do chacal ocultasse todas as maravilhas do mundo.
Para que os feitos do Rio lhe fossem atribuídos a ele.
Derrubou as árvores das margens e construiu uma escada tosca, à sua imagem, subiu ao céu, arrancou o Sol do seu pedestal e guardou-o num sarcófago que levava consigo para o efeito.
Tornou-se noite. O tempo parou, o Rio já não sabia fluir, os da cidade esconderam-se com medo.
Levou o Sol para o seu laboratório de carrasco e cortou-o em pedaços muito pequenos.
Espalhou os pedaços nos caminhos de modo a que os passarinhos os vissem luzir, pensassem que eram migalhas de pão e os comessem.

Os da cidade quedavam-se como mortos, transidos de medo, os anjos sem eles nada podiam fazer, o Rio parara de correr, as estrelas moravam lá longe, a serpente, envergonhada, fugira.
Só a Lua podia valer ao Sol.

A Lua escura, que o chacal não produzia luz que se visse, que desse alvura à Lua, que a enchesse, foi a lua escura que falou com os passarinhos, que lhes pediu que lhe devolvessem o seu amado.
E eles grão a grão foram depositá-lo no seu lugar no céu.
E pouco a pouco recomeçou a brilhar.
Mostrou o seu poder e a sua glória, encheu a Lua, fê-la brilhar com ele, derramou a sua bênção sobre o mundo do Rio, devolveu o tempo, o que faz andar os dias e as noites e as espigas de trigo, acordou os da cidade e fê-los sentir vergonha do seu medo.
Chamou os anjos, a serpente, os lobos e as raparigas incautas que tomam banho nuas no Rio, disse-lhes que retomassem a vida e que prendessem o chacal.

Estendeu as suas asas sobre o mundo, encolheu-as de novo e o Rio adormeceu em paz.

Monday, November 21, 2005

 

Pôr do Sol na Cidade

De repente o céu tornou-se amarelo, como se um manto sépia de fotografia antiga tivesse recoberto o mundo com a cor própria dos parentes falecidos.

Um raio de Sol luta por penetrar na opacidade urbana.
Sentem-no as varandas dos andares de cima dos prédios mais altos que se iluminam em aplauso desse esforço.

As nuvens começam a ganhar contornos no cinzento generalizado.
Dizem eu sou esta, eu sou aquela, o vento leva-me a passear o meu esplendor.
Partem devagarinho, num adeus prolongado como um suspiro de saxofone, aproveitam a força da claridade que morre para ganhar vida por um momento antes que a noite as consuma no seu fogo escuro.

As ruas respondem iluminando-se umas e escondendo-se as outras em tabuleiros ortogonais.Os carros hesitam sobre se hão de acender os faróis até que se convencem que este dia já não volta, que já não volta nunca mais, à medida que o sépia se transforma em roxo e tudo volta ao normal.

 

Há dias assim

Há dias em que mesmo o céu cinzento parece coberto de flores.

Há dias assim em que em vez de doer a alma ama tudo o que a vista alcança e rega a natureza da Primavera que lhe vem faltando.

Também há dias assim.

Saturday, November 19, 2005

 

Cedo a Chuva

Cedo, hoje de manhã a chuva inverteu a sua marcha.
Subiu da terra para o céu, engravidou-o de nuvens enquanto esperava que ninguém desse por ela.

 

Reflectir

Reflectir.

Reflectir os sabores do dia.
Assim como num restaurante:
O prato do dia hoje é saudade.
Por contrapartida na sexta-feira passada foi o dia dos sabores picantes dos sorrisos entrevistos como se fossem só adivinhados.
A vida à vontade de um cozinheiro de estados de alma que vai fazendo os pratos do dia e os da lista com uma serenidade quase sádica, a olhar para nós sem nos ver.

Reflectir.

Na velocidade em que o coração bate, na velocidade dos pensamentos encerrados numa praça de toiros, a andar à volta enquanto o toureiro prepara a estocada fatal.

Reflectir.
Os dias perdidos em que o fim-de-semana se aproxima assustadoramente depressa e menos uma semana de vida à frente.
Os meses correm como se não houvesse intervalos entre os aniversários, como se estes se amontoassem a sorrir com um esgar sarcástico à porta da minha consciência.

Reflectir.

Ainda ontem sorria o Sol que me aquecia a cara no Outono brando.
Corria porque o andar não me chegava.
Respirava o ar com fome de sentir o perfume da Primavera.

Reflectir.
Que amanhã vou procurar outra vez esse tempo.
Na memória.

 

Outono

A Rosa acordou na manhã coroada de orvalho.
As pétalas tinham consigo brilhos de pedras preciosas que fugiam da claridade e se escondiam anónimas nas nuvens.
Todo o jardim acordava estremunhado no frio recém-chegado ao Outono.

Friday, November 18, 2005

 

O Buraco, Era Uma Vez

Desgostoso regressou à Terra, tanto trabalho para encontrar a paz e o resultado do seu trabalho fora um enorme campo de concentração.

Regressou à Terra, à sua Terra, ao seu tempo, à sua Rua, ao seu gato e ao seu armário e foi dar uma volta para espairecer.

Viu um buraco desses das obras na rua.
Aproximou-se, espreitou, e o que viu confirmou que o apelo que o buraco lhe transmitira não fora em vão.
Embora fosse noite escura, tanto quanto o permite a iluminação da cidade, no fundo do buraco via-se o céu. Não um céu qualquer, nocturno, estrelado, de Lua e tudo mas um céu diurno, azul, como se o buraco atravessasse a Terra e mostrasse o que se passava nos antípodes a essa hora.
Olhou à volta e como não visse ninguém resolveu descer.

Thursday, November 17, 2005

 

O Buraco, a arma secreta

As cabras foram levadas através da terra de ninguém até às fronteiras do território dos uma perna. Aí foram pastoreadas para as plantas mais tenrinhas, mais inocentes.
Fizeram nelas grande mortandade.
Vigiadas dia e noite por guardas armadas de herbicida e desfolhante as cabras cresceram e multiplicaram-se, cada dia comiam mais plantas.
Os duas pernas avançavam pelo território inimigo sem que os uma perna pudessem opor uma verdadeira resistência.
E tentaram. Plantas houve que num assomo de coragem se envenenaram, fazendo morrer algumas cabras consigo. Mas os laboratórios das guardas logo tomaram as iniciativas necessárias à detecção precoce dos venenos e à criação de antídotos. Às silvas, plantas carnívoras e trepadeiras viciosas as cabras chamavam um figo.
À medida que os uma perna avançavam, precedido pelas cabras, iam aprisionando os uma perna em hortas, mantendo-as em reservas, aumentando a produção de alimentos de modo a permitir o seu próprio crescimento populacional.

A certa altura apenas restava um bosque em que o Rei Olmo se refugiara.
Contra os duas pernas e as cabras erguia-se agora o último reduto da resistência dos uma perna.
Uma carga magnífica em direcção à morte teria sido um destino digno de um rei.
Mas após a morte ainda restaria ao Rei Olmo e à sua comitiva a humilhação de ser pasto das cabras, e isso não podia admitir.

Só havia uma possibilidade: A morte pelo fogo.

Foram realizadas as cerimónias do incêndio.
As tochas foram ateadas pelas plantas ígneas.
Levadas à presença do Rei Olmo.

Em frente os pastores aguardavam com as cabras o nascer do Sol, alinhadas em frente de batalha.

O Rei Olmo levantou os ramos e deu o sinal.
Morro com a Pátria, gritou.
As plantas ígneas curvaram as tochas na direcção das plantas rasteiras, secas, dispostas em volta do Rei e das árvores principais.

O reino terminou numa apoteose de fogo que só descansou quando a última folha enegreceu de cansaço e se entregou.

Em frente as faces das guardas iluminadas pela aurora reflectiam nos olhos o fogo dos vencedores.
Enfim a paz chegara!

Wednesday, November 16, 2005

 

O Buraco. Partir em busca do Cabalista.

É daquelas coisas mais fáceis de dizer que de fazer.
Tempos e regimes políticos houve em que uma mera lista telefónica era considerada um segredo de estado.
Depois começaram a aparecer directórios, páginas amarelas, hoje motores de busca.
Mas tentem procurar cabalistas na Net. É difícil. Aparece quase tudo mas cabalistas é difícil. E depois não se trata de encontrar um cabalista mas de encontrar o cabalista certo.
O mais prático era entrar num buraco junto de uma cabine telefónica e procurar na lista. Assim fez. Entrou num buraco do centro comercial ao lado de uma cabine telefónica, procurou a lista sob «O Cabalista Certo» e encontrou um número (também tratando-se de Cabala o difícil seria não encontrar um número).
Ligou para lá e atendeu uma senhora de idade (na realidade todas as senhoras têm idade, mas só a algumas é reconhecido esse privilégio). Que não, que era a filha, que o pai já tinha falecido e tinha doado os planos do mecanismo dos buracos a uma associação de caridade.

A associação de caridade tinha achado que os planos eram importantes demais para ficarem na sua sede e decidiu guardá-los num banco suíço. Levavam os planos em sigilo para a Suíça quando o avião em que seguiam se despenhou no mar. Os sobreviventes estiveram vários dias numa jangada à deriva e tinham sido obrigados a comer os planos para sobreviver.

Não havia cópias e o disco do computador em que tinham estado guardados tinha sido atirado da borda do mundo fora por um discóbolo voador que o farejara durante uma tempestade.

Resumindo, não havia planos em lado nenhum.

O transporte de peixes vivos parecia-lhe difícil nessas circunstâncias. Além de que não tinha a certeza de haver mar no planeta dos dois sóis.

Teve então a ideia de levar animais de mais de duas pernas consigo. Talvez já tivesse passado o período das interdições religiosas do seu consumo.
Regressado à Terra natal dirigiu-se a uma quinta e comprou duas cabras e um bode.
Achou que era o máximo que podia transportar consigo de uma vez e teriam de ser transportados de uma vez para terem qualquer hipótese de serem coevos no planeta dos dois sóis, dada a instabilidade do tempo nas viagens.

Dirigiu-se ao buraco, que agora ficava no meio de um largo medieval (apertadinho como qualquer largo medieval) e por isso ninguém estranhou que um homem vestido com umas roupas esquisitas trouxesse com ele aqueles animais.

Entrou no buraco e procurou os comandos. Quando os encontrou digitou transporte de animais vivos. Surgiu-lhe a referência “Projecto Noé”, que lhe permitiu abrir um espaço onde colocou as cabras e o bode.
Digitou então planeta dos dois sóis e viu-se novamente na cidade, no centro comercial do costume.
Uma série de mulheres com ar blasé passeavam os respectivos Cro Magnon em frente à montras.

Fingiu que andava a passear os cães e confiou em que aquela gente não soubesse distinguir cães e cabras (aliás não havia nem uma coisa nem outra no planeta), no que teve sucesso, conseguindo chegar ao Palácio Real sem problemas.

Foi recebido por uma jovem com um tailleur discreto que trazia uma miniatura da máquina de traduzir na lapela do casaco. Que estava já à sua espera pois que uma profecia antiga ditava a sua vinda para aquele dia, só que mais cedo.

O Conselho das Ministras reunira-se já para o receber e tinha instruções precisas a dar sobre o destino dos animais.

Tuesday, November 15, 2005

 

O Buraco, novamente as sardinhas mas agora noutro contexto

Pelos vistos o problema continuava.
Não conseguia deixar de pensar nos olhos implorantes das batatas ao ser-lhes arrancada a pele, ao serem devoradas, os gritos desesperados das azeitonas a serem esmagadas, a verem as suas irmãs esmagadas, ao serem despojadas do seu conteúdo líquido em borbotões de dor.

E os bagos de arroz estendendo-se no prato como lágrimas perladas.

Basta! Disse para si próprio. Tenho de pôr termo a este massacre de inocentes.

O problema é que começava a ficar com fome, com esta história das viagens entremundos já há uns dias que andava de dieta e começava a sentir-lhe os efeitos.
Mas como resolver o problema? Uma simples sanduíche tinha o seu conteúdo de cereais e não podia deixar de pensar em espigas decepadas, arrancadas ao caule mãe. E pior, não podia deixar de pensar na vingança do Rei Olmo.
Estava metido num buraco e tinha de se safar de alguma maneira.

A solução seria talvez a importação massiva de sardinhas para reprodução.

Mas isso implicava uma tecnologia de que não dispunha, tecnologia de construção de buracos apenas ao alcance de um cabalista. E para isso era preciso antes do mais saber se o que plantara os buracos que conhecia não fora o último e depois conseguir contactá-lo.

Monday, November 14, 2005

 

O Buraco, a Origem

Desta vez caiu no átrio de um centro comercial, na Cidade, num canteiro de areia onde os duas pernas mantinham prisioneira uma palmeira.

Ao vê-lo cair vários homens se ajoelharam e olharam para si e para os bacalhaus secos como se observassem um milagre enquanto gritavam “bacalau!”.
Atentos os antecedentes fundamentalistas daquela gente decidiu desatar a fugir a correr.
Só parou quando teve a certeza de que ninguém o perseguia, nessa altura procurou com calma o palácio da Rainha, o que não foi difícil dado que era o edifício mais alto da cidade.
Bateu à porta e as guardas olharam-no com um ar espantado, mas deixaram-no entrar como se estivessem já à sua espera.

Uma conselheira da Rainha acorreu a falar consigo. Trazia com ela a máquina de traduzir, fez-lhe grande festa e levou-o de imediato à Rainha.

Com surpresa verificou que esta não era a mesma pessoa do dia anterior e que aliás não reconhecia nenhuma das conselheiras presentes.
Teve medo de se ter enganado no Palácio e ia pedir desculpa e retirar-se quando a Rainha, a quem a conselheira entregara a máquina de traduzir, lhe pediu que esperasse um pouco.
Mais descansado ficou mais um pouco a falar do tempo e de outras miudezas e a certa altura arriscou e perguntou se estava no sítio certo.
Todas elas se riram e a Rainha disse-lhe que segundo as crónicas cada vez que chegava com uma carga de bacalhau perguntava o mesmo.

Já acontecera o mesmo no tempo da sua mãe e da sua avó.
Pelos vistos o buraco do centro comercial era um buraco de repetição.
Já voltara diversas vezes com cargas de bacalhau embora das outras vezes tivesse ido parar a uma câmara secreta no Palácio.
Por isso quando os homens mal-encarados o tinham visto no centro comercial tinham ficado espantados e tinham assumido naturalmente que se tratava de um memorável fenómeno de magia.
Provavelmente desta vez saíra fora do aparelho de repetição, pelo que poderia voltar a ter memória da viagem.

Os buracos eram criação de um antigo cabalista que tivera de fugir do seu planeta para salvar a pele de uns tipos maldosos que a queriam colher antecipadamente, eram tubos transmissores de energia que faziam funcionar as cinco dimensões, as do espaço, o tempo e a imaginação.

Ao ser introduzido num buraco era precisamente a energia da imaginação que permitia ao viajante ser transportado através das outras dimensões e recolher-se a outro mundo. Como o cabalista não tivera muito tempo para aperfeiçoar a máquina esta tinha uma ligeira descompensação que tornava sempre incerto o onde e o quando as coisas aconteciam, o que aliás dava um certo sabor picante às viagens entremundos.

Perguntou se afinal gostavam do bacalhau.
Que gostavam muito e que o comiam com batatas temperado com azeite.

Sunday, November 13, 2005

 

Nota explicativa sobre o texto anterior:

http://www.bacalhau.com.br/

 

O Buraco, a Epopeia do Bacalhau

Estava na altura de regressar à Terra e trazer de facto uns fardos de bacalhau.
Prometeu que vinha já na volta do correio e perguntou à conselheira como é que chegava ao buraco.
Ela disse-lhe que não se afligisse porque havia buracos por todo o lado, ele tinha é tido azar até então, se saísse do palácio e fosse até ao centro comercial mais próximo havia de encontrar um junto da bilheteira do cinema.

Não era ainda a altura de fazer mais perguntas, de inquirir o que elas sabiam sobre os buracos e os seus construtores (teriam sido os antigos egípcios, os sumérios, alguma seita evangélica, os marcianos?), ou porque não usavam elas os buracos no sentido contrário.

Seguiu as instruções e foi até à bilheteira do cinema, onde verificou que os filmes em exibição eram a preto e branco. Pediu licença para passar a um grupo que olhava embevecido um televisor a cores (que presumia que não lhes iria ser de uma utilidade especial) e entrou pelo buraco abaixo para subir até ao buraco de onde partira na Terra.

Mais uma vez estava tudo diferente. As casas tinham um ar moderníssimo mas o ar estava instável, assim como se estivesse no epicentro de um tremor de ar. À medida que a sua vista alcançava mais longe tudo lhe parecia não só mais distante como mais atrasado. Isto gerava um movimento ondulatório do tipo que se tem quando se tem uns óculos de lentes grossas e se olha meio por dentro meio por fora deles.

Saiu e começou a percorrer a rua à procura de uma loja onde pudesse comprar bacalhau.
Acabou por a encontrar no que lhe parecia ser já o início do século XX, um merceeiro careca, de lápis atrás da orelha mesmo junto ao canto do sorriso melífluo, mangas da camisa às riscas atadas com ligas um pouco acima do cotovelo, hálito a alho.
O problema era que o dinheiro que trazia consigo mais uma vez ali não valia nada.
Negociou o relógio com o merceeiro em troca de todo o bacalhau que lhe pareceu ser capaz de levar às costas. A si não lhe fazia falta nenhuma e ao merceeiro era capaz de lhe dar jeito para atravessar a rua.

Começou a andar na direcção do buraco com a sua carga às costas.

As coisas começaram a ficar complicadas. De cada vez que dava um passo este tinha metade do comprimento do anterior. Assim nunca mais iria conseguir chegar lá.
Se não era exactamente isso era uma coisa parecida, cada passo que dava durava o dobro do tempo em relação ao anterior, o efeito era o mesmo.
Uma jovem tartaruga que caminhava ao seu lado parecia-lhe ter o mesmo problema.

Acabou por conseguir resolver o problema saltando para o estribo de um carro eléctrico que passava no local. Como não havia paragem ao pé do buraco deixou-se simplesmente cair para dentro dele com a sua carga do precioso peixe.

Do outro lado o tombo foi valente, foi como se caísse da altura da janela de um rés-do-chão bem alimentado. Felizmente o terreno era mole.

Saturday, November 12, 2005

 

O Buraco, história breve do planeta dos dois sóis

De qualquer modo com algumas más interpretações no meio a rainha ficou satisfeita com as suas explicações e convidou-o a ficar no palácio pelo menos enquanto durasse o salmão.

Para o pôr ao corrente da história local destacou uma conselheira, que o inteirou de alguns factos importantes.

A guerra entre os seres de uma perna e os seres de duas pernas não era tão antiga como a história do planeta.
No princípio tudo fora como na própria Terra, havia plantas, animais herbívoros que comiam plantas, animais carnívoros que comiam animais herbívoros que comiam plantas e havia os seres de duas pernas que comiam tudo isso.

Um dia de um buraco no solo brotou um alienígena que explicara aos seres de duas pernas que comer outros animais era uma coisa muito feia, porque estes deviam ser respeitados.
As suas palavras foram interpretadas para além da letra e formaram-se grupos de exaltados que mataram todos os animais do planeta (não, não fora uma miragem o esqueleto que vira no deserto) a fim de que não pudessem ser comidos.

Ao ver as consequências da má interpretação das suas palavras, ao ver que os animais tinham sido massacrados, o alienígena resolvera modificar os genes das plantas fazendo-as sofrer e pensar.

Sobravam os insectos, os que na primeira viagem e ao longe lhe tinham parecido pássaros, mas esses não eram comestíveis e além disso eram extremamente ferozes.

Tendo convertido os seres de duas pernas ao vegetarianismo e tendo dotado as plantas de imaginação o alienígena partiu com o pretexto de se ter esquecido de pôr uma moeda no parquímetro no seu planeta de origem e deixou para trás de si o estado de guerra permanente em que o planeta dos dois sóis se encontrava agora.

Perguntou à conselheira porque se encontrava o acampamento no deserto e qual o papel aparentemente tão relevante da menina falecida.

Foi-lhe explicado que no planeta dos dois sóis as terras com aptidão agrícola eram escassas. E secas.
As plantas lutavam tenazmente para introduzir espécies que secassem as fontes e tornassem a agricultura impossível, assim matando os seres de duas pernas.

Raramente chovia, a chuva tinha de ser provocada por seres especialmente dotados das qualidades necessárias, que eram raríssimos.
A menina era uma dessas pessoas. Deslocara-se com um grupo numeroso de forma a escoltá-la até à orla do deserto para fazer chover naquele local em que a encontrara.
Durante a noite as plantas, usando provavelmente um método comum nelas, a emissão de perfume tóxico, teria feito a menina afastar-se da escolta e dirigir-se às silvas, que a trataram da maneira que vira.

Daí que para além da perda pessoal que é para cada pessoa na comunidade a perda de um dos seus membros tivesse havido consternação pela perda de uma pessoa de características tão raras e benéficas.

 

O Buraco, a Rainha

Chegados à Cidade a notícia do luto foi passando de boca em boca e deixando todos consternados, deixando os semblantes mais jovens tristes e os mais velhos consternados, tanto que também a si, que vira o que acontecera à menina um pesar grave não lhe saía do coração.

Sempre com bons modos foi sendo levado até o que lhe pareceu ser o palácio real (ou a sede do governo, de qualquer modo a sede do poder).

Sem grandes preliminares, mais cedo do que esperava foi recebido em audiência pela que veio depois a saber ser a rainha do povo local.

Não ficou admirado ao verificar que toda a sua corte, as pessoas que a rodeavam eram mulheres. Naquele planeta o feminino era claramente o género dominante e o papel dos homens parecia ser bastante reduzido.

A própria linguagem, embora não a compreendesse, era manifestamente distinta quando se tratava de diálogos entre mulheres ou entre mulheres e homens ou entre estes. A linguagem usada pelas mulheres umas com as outras soava mais doce e não era acompanhada de expressões gestuais como a que observava nos outros contactos nos quais a expressão oral era abundantemente acompanhada de posturas do corpo e sinais feitos com as mãos.
Foi apresentado à rainha com o que restava dos pacotes de salmão fumado, os que tinham sido recuperados pelo mais corpulento dos homens, e que entretanto tinham feito a viagem expostos ao calor dos sóis desde o acampamento no deserto até ao palácio real.

Estava intrigado com a maneira como iria poder falar com a rainha até que viu a máquina de traduzir feita de latas de sardinha que sobrara da viagem anterior.
A tinta que cobria o metal das latas estava desbotada, como se tivesse estado guardada durante gerações num baú à espera da oportunidade de ser utilizada, embora tanto quanto se recordava tivesse sido construída no dia anterior.

No princípio a rainha não o abordou directamente mas através de uma conselheira.
Perguntou-lhe de onde vinha, como chegara ali e o que o trazia aquelas paragens.

Respondeu como pode, deixando em branco as explicações relativas ao buraco que constituía o seu meio de transporte porque na realidade não fazia a mínima ideia de como aquilo funcionava, só sabia que não tinha lógica nenhuma.

A rainha resolveu então intervir e perguntar-lhe directamente se tinha entendido bem que queria montar um restaurante especializado em peixe no seu planeta a ser financiado pelo Rei Olmo.

Que não era bem isso. Fora de facto abordado pelo Rei Olmo de quem trazia o apelo ao consumo de peixe em vez de vegetais pois que o consumo destes seus irmãos trazia o rei muito consternado. E ele próprio tivera a ideia de sugerir que os seres de duas pernas consumissem peixe em vez de vegetais de modo a pôr termo à guerra que tão brutalmente ainda naquele dia ceifara a vida de uma tão jovem criatura.

Claro que neste tipo de diálogos há sempre qualquer coisa que se perde, mais que não seja por razões culturais. Há sempre qualquer coisa que se perde num diálogo, mas então se as palavras forem mediadas por uma máquina construída com latas de sardinha usadas a probabilidade de se perder grande parte do sentido aumenta muito.

 

O Buraco, a Cidade

Estava na altura de aprender mais sobre o planeta dos dois sóis.

Os alienígenas, de semblante carregado devido à perda que tinham sofrido, levantaram o acampamento e dirigiram-se para Norte.
À medida que prosseguiam a paisagem ia mudando, as ervas escassas que vira no princípio começavam a aumentar de frequência e o verde que apresentavam tornava-se mais carregado. A certa altura começou mesmo a ver arbustos e depois uma paisagem de hortas suburbanas à medida que se ia aproximando do que veio a verificar ser uma cidade.

No entanto uma circunstância intrigou-o ainda no início da caminhada e fê-lo pensar.
Num sítio batido pelo vento pareceu-lhe ver umas ossadas de animal. De animal que na Terra teria quatro patas pois do lado esquerdo do crânio espetava-se na direcção do céu um corno.
Parecia parte de um esqueleto de vaca ou outro animal congénere que tivesse morrido no deserto e que a secura tivesse parcialmente conservado.

Isto pô-lo a pensar sobre a dieta vegetariana dos seres de duas pernas. E estes, tanto quanto pudera observar até ao momento eram os únicos animais do planeta (com excepção do que ao longe lhe parecia serem pássaros logo na primeira vez que o visitara).

Apesar de o deserto ser convidativo à meditação não pode chegar a conclusão nenhuma por falta de dados.

 

O Buraco, a Cidade

Estava na altura de aprender mais sobre o planeta dos dois sóis.

Os alienígenas, de semblante carregado devido à perda que tinham sofrido, levantaram o acampamento e dirigiram-se para Norte.
À medida que prosseguiam a paisagem ia mudando, as ervas escassas que vira no princípio começavam a aumentar de frequência e o verde que apresentavam tornava-se mais carregado. A certa altura começou mesmo a ver arbustos e depois uma paisagem de hortas suburbanas à medida que se ia aproximando do que veio a verificar ser uma cidade.

No entanto uma circunstância intrigou-o ainda no início da caminhada e fê-lo pensar.
Num sítio batido pelo vento pareceu-lhe ver umas ossadas de animal. De animal que na Terra teria quatro patas pois do lado esquerdo do crânio espetava-se na direcção do céu um corno.
Parecia parte de um esqueleto de vaca ou outro animal congénere que tivesse morrido no deserto e que a secura tivesse parcialmente conservado.

Isto pô-lo a pensar sobre a dieta vegetariana dos seres de duas pernas. E estes, tanto quanto pudera observar até ao momento eram os únicos animais do planeta (com excepção do que ao longe lhe parecia serem pássaros logo na primeira vez que o visitara).

Apesar de o deserto ser convidativo à meditação não pode chegar a conclusão nenhuma por falta de dados.

Friday, November 11, 2005

 

O Buraco, a Tragédia

Andaram umas horas.
Lentamente a vegetação ia aparecendo e tornando-se menos esparsa à medida que caminhavam para Norte.

Perto do meio da tarde chegaram ao acampamento dos homens mal encarados.
O acampamento vivia momentos de grande agitação.
Os homens de caras pesadas partiam e chegavam em pequenos grupos.
As mulheres punham um ar desesperado, algumas choravam mesmo.

Pouco a pouco apercebeu-se que procuravam alguém que estava perdido.
A certa altura um grupo de homens aproximou-se a correr e ao chegar perto do acampamento começou a gritar.

Todos se lhes dirigiram.
Um curto diálogo e as mulheres que choravam começaram, a gritar.
Formou-se uma pequena multidão que correu atrás do grupo de chegara com as más notícias.

Seguiu-os. Pouco depois chegaram a um silvado.
Uma mulher aproximou-se e começou a regar as plantas com herbicida.
À medida que o recuo das silvas permitia ver o que estava no seu meio uma mancha de cor ia aparecendo e ganhando forma.
O corpo mutilado de uma menina era colocado por caules de silva numa posição grotesca. Um ramo particularmente vicioso agarrara-se-lhe á garganta e quase lhe separara a cabeça do tronco.

A visão era tão imunda que todos, homens e mulheres se calaram.
Depois, sem qualquer combinação prévia mas quase ao mesmo tempo lançaram-se sobre as silvas e começaram a arrancá-las com ódio.
Com paus, com facas e foices, com as próprias mãos.
As silvas riam-se escarninhas. Enterravam-se cada vez mais no ventre duro do solo e escondiam-se desta forma da fúria das pessoas.

Finalmente retiraram o corpo da menina.

Uma coisa estranha naquele planeta estranho de dois sóis e árvores falantes era o quase dimorfismo sexual.
Os homens eram verdadeiros monstros (não no sentido lunar do termo mas no vulgar), as mulheres seres de outro planeta propriamente ditos.

A menina morta tinha sido um ser particularmente bonito. Teria cinco anos pelos nossos padrões. Algo na maneira como estava vestida distinguia-a das outras meninas que agora via.
Deveria ser alguém importante ou a filha de alguém importante.

A sua empatia com os vegetais do planeta diminuiu consideravelmente, e o efeito que esperava conseguir com a sua carga de salmão iria ficar pelo menos adiado.

Thursday, November 10, 2005

 

O Buraco, episódio dos tipos mal encarados

A rapariga pediu-lhe através da máquina de traduzir que arranjasse mais daquela comida maravilhosa.
Prontificou-se a ir buscá-la de imediato e as guerreiras escoltaram-no de volta ao buraco.
Voltou à Terra no mesmo local.
Pelo menos parecia o mesmo local, a praça tinha a mesma forma, mas os prédios eram agora estruturas de vidro, betão e metal.

Não viu ninguém na rua apesar de ser dia alto.

Procurou uma mercearia mas não viu nada que se assemelhasse. Queria levar consigo uns quilos de bacalhau, mas parecia estar com azar.

Finalmente encontrou uma espécie de máquina Multibanco que vendia salmão fumado.
Como não tinha cartão nenhum e o dinheiro que a máquina indicava era totalmente estranho em relação ao que trazia consigo lembrou-se de partir o vidro da máquina e desatar a correr para o buraco antes que fosse preso.

Assim o fez.
Logo uma buzinaria incrível feriu-lhe os ouvidos, enquanto luzes intensas lhe corriam para os olhos e vindo aparentemente de lado nenhum um cão enorme dirigiu-se-lhe com um ar feroz.

A custo conseguiu mergulhar no buraco, de cabeça.
Caiu do outro lado do mundo.
Desta vez era um deserto.

Durante uns minutos parou para olhar em volta e recuperar a respiração.
Depois começou a andar na direcção do que presumia ser o Norte.

Ao passar por uma duna de areia à sua direita viu um grupo de pessoas que caminhava em fila.
Pensou tratar-se das suas amigas da outra vez, as das sardinhas, e fez-lhes sinal.

Um bando de tipos horrendos, com ar de cro-magnon acercou-se dele.
Traziam lanças de lâmina de pedra e um lançador de herbicida igual ao que vira nas mãos das outras.

Começaram por o cheirar.
Depois cheiraram o salmão fumado.
Começaram a abrir as caixas e a comer fatias do peixe, mas nessa altura um deles, o mais corpulento, correu-os todos à paulada, pegou nos pacotes de salmão, guardou-os num saco e deu ordem de marcha.

Como não tinha mais para onde ir foi com eles.

Wednesday, November 09, 2005

 

A Rosa, o Sol, o calor, o regato e os peixes,desencontros furtivos

A Rosa encarnada estende para o Sol as suas cinco pétalas como se fossem tentáculos em afagos suaves.
O calor do Sol fá-la molhar-se de suor.
Sorri e foge, oculta-se em Vénus, que a acolhe de braços abertos.
O Sol procura-a, ávido, nas sombras, mas é meio-dia e não a consegue encontrar porque não há sombras.
Encontra-a num regato, junto dos jacintos, mancha encarnada em fundo branco, senta-se a olhar para ela e faz os peixes do regato resplandecer em prata com a sua luz intensa.
Olham-se mutuamente, como se se estudassem, como se se admirassem, a força do Sol, a beleza da Rosa, entrelaçam as mãos e deslaçam-nas de novo.
O Sol corre para o céu e ilumina-o com um brilho novo, daqueles de paz celestial.
A Rosa mergulha o pé no Rio e empreende uma grande viagem.

Tuesday, November 08, 2005

 

O Buraco episódio III, a sardinhada

Emergiu do outro lado quando um dos sóis já se tinha posto e o outro se aproximava do ocaso.

Não estava no mesmo sítio.
Uma selva emaranhada aguardava-o mal saiu do poço.

Começou a tentar andar no meio dela e sentiu uma picada na perna esquerda, olhou e viu que uma espécie de trepadeira se lhe enraizava pela perna acima e lhe começava a sugar o sangue.
«Socorro!» Pediu, apenas para atrair mais e mais trepadeiras, que o começaram a cheirar com ar carnívoro.

Num instante estava coberto delas e as feridas no corpo começavam a enfraquecê-lo.

Viu então um clarão seguido de outro. As trepadeiras carnívoras recuaram em pânico enquanto os seres mais belos que vira na sua vida disparavam salvas de herbicida.

Num momento mordazes as trepadeiras guinchavam agora de terror e largavam-lhe o corpo com promessas de havemos de voltar a ti espelhadas no olhar.

Uma rapariga alta aproximou-se dele e começou a pensar-lhe as feridas.

Falou-lhe numa língua estranha, insistiu nas perguntas e pôs um ar admirado quando viu a sua atrapalhação.

Ela e as companheiras levaram-no para o seu acampamento.
Junto do fogo assavam batatas.

Consciente de que podia estar a ser observado pelos espiões do Rei Olmo sorriu muito mas não comeu. Em contrapartida abriu umas latas de sardinhas e dispôs-se a partilhá-las com as suas salvadoras.
No princípio cheiraram-nas desconfiadas. A que o pensara provou um bocadinho. Daí a pouco todas queriam mais.

(No seu bosque preferido o Rei Olmo foi informado destes acontecimentos e pensou que as coisas estavam a correr de feição)

Uma das salvadoras que tinha mais jeito para lavores pegou nas latas vazias e construiu um tradutor automático que lhes permitiu comunicar com o terrestre.

 

O Buraco, Continuação

A resposta saiu de imediato: um não com ar horrorizado.

Tinha de ser.
É claro que é muito mau começar o relacionamento entre duas civilizações alienígenas com uma mentira, mas que é que podia fazer?

Podia dizer-lhes que até aí o ar suplicante das batatas no prato o deixara indiferente, que os gritos de socorro das cenouras baby prestes a ser retalhadas não o comovia, que as pilhas de rabanetes como crânios cortados à vida em rama apenas lhe inspiravam apetite?

Que na Terra só comemos peixe.

- «Peixe? Que é peixe? Tem uma ou duas pernas?»
- «Peixe, bom, a bem dizer peixe é peixe, vive na água e não tem pernas, melhor, todo ele é uma perna, mas não é como vocês, tem escamas e boca.»

As árvores resolveram então levá-lo ao Rei Olmo.
Um estrangeiro com duas pernas que não come os seres de uma só perna.
Um estrangeiro que come uma coisa de que nunca ouvimos falar, «peixe».
Pode ser a solução para os nossos problemas.
O Rei pensou, buscou apoio no seu conselho, na sua maior parte constituído por arbustos odoríferos, e tomou uma resolução.

Condecorou o estrangeiro e nomeou-o embaixador junto dos de duas pernas (esperando sinceramente que estes lhe dessem tempo para falar antes de o comerem).

Comovido com a honra que lhe prestava o Rei Olmo pensou num plano para abordar os de duas pernas.

Decidiu voltar à terra e buscar uns presentes para lhes oferecer assim que chegasse à fala com eles.

Desceu o buraco, que agora lhe começava a parecer um poço, e subiu em direcção à Terra.

Encontrou-se na mesma rua em que encontrara o buraco, mas agora era dia claro.

Ao sair do poço reparou que os prédios tinham uma cor diferente da que tinham tido no dia anterior, as mulheres usavam xaile e os homens chapéu.

Achou estranho, e o rapaz que o atendeu na mercearia também achou estranho vê-lo sem chapéu mas não disse nada.

Pediu uma caixa de latas de sardinha e voltou para o buraco.

Monday, November 07, 2005

 

O Buraco

O espantoso não foi encontrar um buraco, esses já ele conhecia bem.
A bem dizer o buraco pavimentar urbano é algo inerente à existência citadina, uma espécie de arrumador a quem não é preciso dar uma moedinha.

Mas aquele era diferente.
Não que fosse distinto dos outros por qualquer sinal visível. Redondo e feio, escuro e marcado por umas fitinhas coloridas a avisar: «Está aqui um buraco!»
Era outra coisa. Como uma aura de mistério que emanasse do buraco, nada de físico, de visível, de palpável, antes um sabor a intuição, digamos uma cor fora do arco-íris.

Aproximou-se, espreitou, e o que viu confirmou que o apelo que o buraco lhe transmitira não fora em vão.

Embora fosse noite escura, tanto quanto o permite a iluminação da cidade, no fundo do buraco via-se o céu. Não um céu qualquer, nocturno, estrelado, de Lua e tudo mas um céu diurno, azul, como se o buraco atravessasse a Terra e mostrasse o que se passava nos antípodes a essa hora.

Olhou à volta e como não visse ninguém resolveu descer. Agarrou as bordas do buraco com as mãos, teve cuidado para não sujar o casaco e as calças e começou a descer por uma espécie de escada encostada à parede.
Desceu três degraus e verificou que por cima já não tinha a noite iluminada da cidade mas que sem dar por ela, talvez enquanto piscava os olhos para os humedecer, era agora o céu azul que estava por cima de si.
Mais uns degraus e verificou que não estava já a descer a escada mas a subi-la na direcção do dia.

Mais rápido do que pensava possível acabou por atingir a orla do buraco.
Espreitou com receio.
Nada à vista, apenas uma grande campina, com árvores esparsas, em que não se via animais, a não ser uns passarinhos muito ao longe.

O ar tinha um leve cheiro adocicado, o que atribuiu à proximidade do buraco.
Resolveu emergir.

Uma vez fora procurou um trilho.
Não encontrou. Estranho, era como se o buraco tivesse sido escavado a partir do outro lado por inteiro, não havia trilhos, marcas de rodados de camiões, montes de terra escavada, nada.
Nem sinais de operários, embora pela claridade do dia fosse certamente hora de trabalho.

Para se certificar, e posto que as horas constantes do seu relógio tinham perdido a validade do outro lado do buraco, olhou para o céu de relance.

Não quis crer no que via, nem o autor destas linhas vos quer comunicar a sua primeira impressão, pois que com certeza estava errada.
De modo que olhou outra vez, e obteve a certeza. Bem, ainda não foi desta.
Todo o nosso saber é montado sobre conhecimentos adquiridos anteriormente, ao vermos uma lata de Coca-Cola presumimos que o seu conteúdo seja Coca-Cola, se efectivamente não for então só o admitiremos após uma análise detalhada, quiçá até com a ajuda de um laboratório.
Certeza mesmo foi à terceira, e mesmo assim só depois de verificar outros indícios, como por exemplo que as árvores tinham duas sombras, uma maior e uma menor.
O Céu tinha dois Sóis.

A esta atitude em que mergulhou chama-se perplexidade. Ficou sem ar.

A Terra é um satélite do Sol.
É o terceiro transporte público de passageiros a contar do Sol, depois de Mercúrio e Vénus.

Das duas uma, ou tinha deixado de ser ou não estava na Terra.

A sua primeira ideia foi retroceder, voltar para casa, para o T2 solitário que partilhava com um gato preto e um guarda-fatos embutido.

Pensando bem talvez seja melhor dar um passeio aqui primeiro, pensou, o gato desenrasca-se sem mim e o guarda-fatos se calhar também.

Experimentou o solo, era firme, atapetado de uma espécie de relva em que os seus passos não deixavam marca. Muito ecológico, pensou.
Achou piada a ter duas sombras enquanto caminhava na direcção de uma das árvores, a mais próxima.
Na realidade a que lhe parecia mais próxima não o era, à medida que se dirigia a ela havia outras que lhe apareciam agora mais perto, como se se deslocassem em direcção a si.
A certa altura estava rodeado de árvores que o olhavam com um ar curioso, embora os termos “olhar” e “curioso” lhe parecessem exagerados, mesmo atrevidos.

«Bom dia! Sabem dizer-me que lugar estranho é este em que me encontro?»
- As árvores olharam desta vez umas para as outras e pareceram conferenciar.
Uma delas, parecia um carvalho, mas mais gordo, disse-lhe:
«O meu caro Senhor não é deste mundo, pois não?»
- «Na realidade parece-me que não, sou natural do planeta Terra, e esta parte aqui está a querer parecer-me não ser exactamente conforme o que estou habituado.»
- «Também achamos estranho que um ser de duas pernas fale connosco, não estamos habituadas.»

A árvore acabou por explicar que o seu Mundo, para o qual não tinham um nome em especial, estava dividido em duas formas de vida básicas, as de uma perna, como as árvores ou a relva, e as de duas pernas, que se pareciam muito com ele mas eram mais feias.

Indeciso sobre se tratava de um cumprimento agradeceu na mesma.

As árvores viram que era um estrangeiro, que não nutria qualquer animosidade em relação a elas, que era um possível aliado, até mesmo um infiltrado no campo contrário e começaram a explicar-lhe os horrores a que o seu género estava sujeito:

As suas irmãs escravizadas, presas em hortas, em searas, em pomares, sujeitas a maus-tratos e a podas mutiladoras, feitas produzir filhos que os de duas pernas comiam sem qualquer respeito, as árvores de grande porte derrubadas, cortadas para lenha sem respeito pela sua idade, pela sua condição.

«No seu planeta não é assim, pois não?»

Sunday, November 06, 2005

 

A Split Second

Parte primeira.

Por um erro de concepção do sistema, a que o coordenador local não esteve atento, um dos segundos da décima hora de 10 de Março de 2006 ocorreu com metade da duração dos restantes na latitude e longitude de Braga.

O fenómeno não foi comum a toda a cidade e devido à sua pequena dimensão apenas se tornou notado cerca das 11h00 quando no decorrer de uma conversa telefónica entre duas pessoas que se aguardavam mutuamente na Praça da Justiça verificaram que enquanto uma delas respondia com algum atraso a outra respondia antes mesmo da inflexão final da pergunta ter sido entoada.

Daí até verificarem que uma já via a outra a olhar para ela quando a outra de facto ainda não olhava foi um momento (com uma diferença para mais ou menos de meio segundo).

Antes que o governo tomasse conta do assunto e se começasse a pensar em criar uma hora legal desfasada o caso ainda se prestou a diversas crises pessoais.

Um homem, um insuspeito angariador de seguros, apanhado apenas parcialmente pelo fenómeno começou a ver duas imagens não simultâneas nas notícias na televisão.
Começou por fechar um olho a pensar que estava a ver a dobrar, como a dupla visão se manteve fechou o outro, mas o resultado foi o mesmo.

Fechou os olhos mas nessa altura foi o tique-taque descompassado do relógio mecânico que o perturbou.
Abriu os olhos e resolveu tentar outra vez.
Fixou uma flor que a mulher pusera numa jarra no dia anterior. A flor não se mexia.
Estou curado, pensou com alívio.

Ligou outra vez o televisor. E voltou a ver a imagem dobrada.
Será da televisão, pensou, mas quando olhou para o relógio para confirmar em que tempo estava viu o ponteiro do segundos a mover-se duas vezes.

Em sobressalto olhou para o écran com atenção: Não via a locutora duas vezes em imagens simétricas, via-a antes em tempos distintos, como se estivesse a ver o eco da imagem.

Um eco demasiado perfeito, porém, sem perder qualidades do original.

Uma senhora fazia compras na praça quando foi apanhada pelo desencontro do tempo.

Um gato.
Malhado e vadio.
Habitué de muros e caixotes do lixo, um gato sabedor, com gosto pela vida.

Gestor competente do tempo de atravessamento de arruamentos urbanos, sempre um pulo à frente dos automóveis.

Até um dia.
Quer dizer um segundo.
Ou ainda melhor, meio segundo. Foi o que lhe faltou para passar à frente de mais um Fiat Punto, desses azuis, normalíssimo.
Nem sequer ia depressa demais, o gato é que se atrasou.
Atrasou-se o meio segundo suficiente para em vez de passar ficar lá feito mancha no pavimento.
Daquelas feias de gordura, sangue e pelo, ossos e músculos, numa misturada cada dia mais cinzenta.

Na guerra do tempo a primeira vítima mortal foi um sábio gestor do tempo.
Nunca mais o Janeiro lhe mia nas veias, o Luar já não ilumina o seu perfil sobre os muros.

Uma senhora ainda fazia compras na praça quando foi apanhada pelo desencontro do tempo.


Se o fenómeno que viria posteriormente a ser conhecido como o “Split Second de Braga” se deveu a um erro do sistema e a uma distracção do coordenador já os factos ocorridos no dia seguinte em Lisboa não tiveram uma origem tão inocente.

Pode-se argumentar com a falta de atenção no recrutamento, o défice moral que atravessa o mundo, ou a imponderabilidade que coroa qualquer sistema, a sua margem de erro, mas isso não invalida a terceira lei de Murphy: Se algo pode correr mal esse algo vai mesmo correr mal.

E correu mal, mesmo mal, o episódio de Lisboa.

Teve o seu epicentro em Campo de Ourique, como não podia deixar de ser.

O coordenador local foi duramente punido, mas o mal estava feito, que é como quem diz, o mal estava à solta.

O segundo passou a valer 1.6180339887 segundos no Jardim da Parada, atenuando-se o efeito à medida que se afastava do lago dos patos.

Assim, na Estrela ou nas Amoreiras o segundo valia ainda 1,43 segundos em relação ao Tempo Universal, na Lapa o afastamento era menor, o segundo durava 1,112 segundos.

O efeito não era neste caso pessoal, interno, não variava na percepção das pessoas, variava localmente.
Assim o desfasamento temporal era visível de fora.

Na esplanada da “Tentadora” o café demorava 1.6180339887 mais tempo a arrefecer visto através das reportagens da televisão que num café da Baixa.

Os reformados e os seus carrinhos de compras andavam com uma lentidão que fazia lembrar férias e outras paragens.

Mas se isto era verdade para os reformados não o era para o Sol.
Este continuava a passear o seu movimento aparente à velocidade do costume, indiferente às criancices dos coordenadores temporais do espaço terrestre.

Daí que embora os relógios (os de pulso, os de parede, os despertadores, os de corda, os eléctricos, os de cristal, os digitais, os tradicionais, as clepsidras e as ampulhetas) indicassem a hora do local em que eram consultados, o Sol não.

Começou a ser meio-dia às seis da tarde, as pessoas almoçavam de noite, os putos vinham da escola ao raiar da Aurora, até os patos do lago do jardim andavam confundidos.

"Chove no meu fuso horário e molha-me os estados de alma" clamava um poeta no coreto.

As pessoas começavam a falar sobre o tempo com um significado mais actual. O “este tempo frio dá-me cabo dos ossos” foi sendo substituído pelo “que horas achas que são no Rossio?”

«Como é que estava o tempo no Algarve?»
- «Atrasado.»
- «O tempo já não é o que era, já não há estações, sempre a atrasar e a adiantar!» Era um desabafo comum.

Fartas da situação as pessoas começaram a movimentar-se.

Mas antes delas os anjos.
Porque era deles que se tratava.

Por razões salariais, por falta de previsão, porque queriam pôr o presidente do sindicato como chefe no lugar do chefe, para demonstrar a necessidade da sua existência e a importância do seu lugar de trabalho, por isto tudo junto, organizaram-se no sentido de desorganizar o tempo.

Ou de o organizar num sentido caótico.

 

Adriano e o Faraó

Capítulo VIII.
Episódio II
Epílogo


Só que os do Clube estavam renitentes. Que lhe lixavam a vida, que descontavam, que não renovavam, que ele era um garoto e um palhaço que ia a correr atrás das gajas…

Antes que a coisa azedasse foi a Clarinha que me pediu que interviesse.

Que o Tó não podia perder o emprego. Mas que vida é que eu lhes reservava? Tinha sentido um autor ser tão malévolo assim a esse ponto? Dizia-me com ar irado: - São ciúmes? – E de seguida com ar meigo – Mas eu tenho sido tão boa para si…
- Além disso o Senhor é que é o responsável por isto, se não tem posto a outra a escrever a carta anónima já o Tó não tinha vindo desarvorado por aí abaixo à minha procura. E ainda por cima é meu cúmplice, olhe se o Tó vem a saber, que cara era a sua? – Ameaçava ela.

Enrascado pela situação em que me metera prometi ao Tó que iria com ele ter com a Direcção do Clube esclarecer a situação. Afinal eu é que era o autor do imbróglio e eu é que tinha de o desatar.

O Tó fez as malas a contragosto, combinámos apanhar o Metro para a Gare do Oriente na direcção do próximo comboio para Aveiro, dei-lhes três quartos de hora para a despedida enquanto lia o jornal e depois fomos os três até ao Metro.

Quer dizer, neste momento já estou preso nesta história como personagem também. Desceram as escadas e eu com eles. Esperaram no cais e eu com eles. Veio o ruído de fundo e o comboio de seguida, aproximou-se do cais, do sítio em que a Clarinha e o Tó esperavam e eu com eles.
Foi nessa altura que senti dois pares de mãos a empurrar-me as costas, desequilibrando-me para a linha.

Cuidado, a poesia está no ar.
Em cada curva da estrada um sinal, possibilidade de queda de poetas. E a gente conduz suavemente serra acima serra abaixo, com aquelas paisagens de asfalto cortadas com indicações de percentagens de inclinações, como num IP 4 sem rumo, e surge um poeta no meio da estrada.

Uma travagem sôfrega. Um cinto que nos prende à vida e que nos salva da poesia.

Socorro, a poesia está no arr...gh!

Saturday, November 05, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo VIII.
Episódio I
A reconciliação e o processo disciplinar.

Há poetas de vários feitios:

Os poetas graníticos, épicos, estrondosamente iluminados em catedrais góticas Strassburguianamente erigidas e decoradas, que enrocam em cataratas de cascalho a pedra bruta e lhe dão forma.

Os poetas mortos, marmóreos e plantados em jardim sem que os seus ramos dêem flores.
Os poetas de barro, da força viva do vinho tinto e dos sabores picantes.
Os delicados, de pedra polida, que procuram embelezar a beleza.
Os indelicados, basálticos, que procuram encaixotar a beleza.
E o poeta em construção? O do martelo pneumático que fura o mármore é procura da onda ideal para surfar a pedra?
E o poeta de pedra que diz à estátua para falar mas quando esta responde não ouve porque como é de pedra o poeta é surdo?

Tempo de ternura, tempo de reconciliação, Tó pede desculpa pelas suspeitas, Clarinha aceita-as de bom grado. Sol que nasce, mão na mão, boca na boca a ver os patos no lago do Campo Grande, e assim se vai o tempo e dos treinos da bola o Tó nem quer saber.
Pois se toda a sua vida está naquele momento que importa o futuro?
E é ela que lho lembra: ó Tó, e os treinos, o Clube?
- Tenho o telemóvel desligado, quero lá saber.
- Mas não podes, é a tua vida, liga para lá, dá-lhes uma desculpa e pede outra para ti.

Friday, November 04, 2005

 

A água e o fogo

Como se a mulher saída da água dançasse a dança do fogo, a dança das bruxas que se reúnem nos bosques, de noite, quando os pecados acordam no peito dos homens adormecidos.
Como se o cabelo de fogo amenizasse a violência da dança.
Como se ao longe só se visse sobre a água do Rio o dançar das chamas.
E sobre a água o fogo cria o mundo, sobre a água descansa o corpo enfim esgotado, sobre a água repousa uma prece de fogo, sobre a água sente-se lenta a languidez do momento mágico.

 

Adriano e o Faraó

Capítulo VII.
Episódio II


A Clarinha compõe-se. Passa os dedos no cabelo desalinhado e põe um ar sorridente, tanto quanto a situação o permite.

Dirige-se à sala e chega lá ao mesmo tempo que o Tó.

Afogueada, porém, a respiração alterada do exercício.

Ao ver o sorriso da Clarinha o Tó arreda para trás os maus pensamentos, que não pode ser, aquela doce criatura não. Ouve a respiração entrecortada, o peito que sobe e desce com ritmo de cortar a respiração.
E corta-se-lhe a respiração, que são más-línguas, então ele não vê o efeito que causa nela?
A respiração ofegante da sua presença?

Esta mulher ama-me.

Como pude ser tão parvo a pontos de dar crédito a cartas anónimas?

Caem nos braços um do outro.

Thursday, November 03, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo VII.
Episódio I

Ignorante da fúria do comboio a Clarinha passeia o seu dia-a-dia com inocência.

Aulas, telenovela, o triste jantar em casa da tia, o encontro furtivo com o Pato Donald.

Às vezes a vida é como a linha do 28 para a Graça, cheia de curvas mas vai dar sempre ao mesmo. E acima de tudo o Pato já a começava a cansar.
Aquele vício que se lhe entranhara começava finalmente a aplainar. Como um rio de torrentes e rápidos que encontra o seu estuário e já não se sabe bem se é a água doce do rio ou a salgada da maré que beija as margens.
Até porque o rapaz estava longe de ser um génio, ou de apresentar características de ter algum futuro de jeito pela frente a não ser o de casar com a colega.
A Clarinha começava a chegar aquela parte da relação em que cada momento junto dele era uma forma de adiar um adeus pouco sentido.

Ainda assim daquela vez, logo daquela vez, o Zé Manel teve artes de a convencer a esgueirar-se com ele para o quarto em casa da tia em que a Clarinha costumava dormir junto da fotografia do Tó.

E o Tó a chegar, furioso, e a Clarinha, linda e inocente arfava nos braços do Zé Manel, ignorante da iminente chegada do Tó, os destinos de todos corriam a juntar-se num nó de desastre.

E como é que vou conseguir evitar uma tragédia, penso eu, agora deveras preocupado com a saúde da Clarinha e do Tó (com a do Pato Donald nem por isso, salta à vista que não gosto dele)?

Toca o Tó à campainha da porta, a tia levanta-se da cama, assustada, quem será a esta hora pergunta de retórica para os cordões do roupão que insiste em atar ao corpo enquanto se dirige com passos firmes de medo ao telefone interno, quem é?

Que é o Tó, passou por Lisboa sem contar e queria ver a Clarinha sei que é tarde mas – faz favor, eu acho que ela já está deitada a descansar, ó Clara, está aqui o Tó!

Abre a porta e o Tó começa a galgar os três andares que o separam da dúvida, da traição, da felicidade, mal sabe ele enquanto sobe as escadas com a agilidade que os treinos da bola dão.

Ai! Mal dá tempo, coitada da moça, de despejar o Zé Manel pela escada de incêndio de calças na mão, abotoas-te lá em baixo, não me estragues a vida, vai-te embora, depois ligo-te, e ele com ar de parvo, como se se lhe tivesse interrompido alguma coisa na vida, como se a vida toda não fosse feita de interrupções. Nasce uma pessoa, morre, interrompe-se a vida, vai-se na estrada, uma avaria, interrompe-se a viagem, e agora esta, apareceu o outro gajo lá de Aveiro, enquanto vai descendo pelas escadas de incêndio, ganha a rua, veste-se e põe-se a mexer com a celeridade que este tipo de ocasião impõe.

Wednesday, November 02, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo VI.
Há sempre uma maneira.


Nessas ocasiões só se pode fazer uma de duas coisas: Ou se canta fado ou se desata aos palavrões e vai tudo raso.

O Tó desatou aos palavrões e decidiu esperar, que a vingança serve-se fria.

Pois!
Mal decidiu esperar apanhou o primeiro comboio para Lisboa.
Imagine-se a alma ferida, a fera enjaulada na carruagem da 2ª Classe, rodando o comboio, rodando como uma máquina de lavar roupa enlouquecida aquela cabeça febril, que maus pensamentos o assombram.

Mas lá no fundo que não, que não pode ser. A Clarinha?! Não a doce Clarinha, segredavam-lhe os carris. Que sim, está visto gritava-lha a paisagem da janela e assegurava-lhe a riqueza dos pormenores da carta.

Mas o que é que eu lhe faço? Prego-lhe um par de estalos e cuspo-lhe nos olhos?
E os sonhos, sim, esses, o andar para comprar, o casalinho de meninos a ter, o amor eterno, o que é que lhes faço?
A esses esmago-os como a ponta de um cigarro? A esses chamo-lhes tempo perdido? Parte da minha vida que não chegou a ser, ou antes que me foi roubada, uma parte de mim que me falta?

E que falta me faz!

Corre comboio, ligeiro, corre para o teu destino. E para o meu.

Tuesday, November 01, 2005

 

Adriano e o Faraó

Capítulo V.
Bento de Espinoza e o Pato Donald
Episódio II


Mas há aquelas tardes em que uma pessoa acorda cheia de culpa. De culpa e de desejo de voltar a sentir culpa, aquela culpa.
E depois que não, durante uns dias, mas a vontade a falar mais alto e a culpa a escapar-se por entre as grades da juventude e do sangue quente, a saltar barreiras como um atleta.
E que este fim-de-semana não posso ir que tenho exame para a semana e fico em casa a estudar e era mentira, pois que estudava mas era nos braços dele.
Não sabia o que tinha, era como um vício, não queria, fugia-lhe mas voltava lá.
E os fins-de-semana cada vez mais estudados e duas vidas a ensarilharem-se.

Duas porque a do Donald estava resolvida há muito tempo com a tal colega que fazia de ingénua e que não percebia até que apanhou a morada do Tó.

A verdade é como um castelo de cartas. Tirando uma vem tudo por ali abaixo. Quid est veritas? A quem serve? Quem lhe paga para estragar assim a vida das pessoas?

E existe mesmo uma verdade, uma coisa assim a modos que científica, a adequação do intelecto ao real?
Pode uma ficção tornar-se real apenas porque é descrita?
Uma descrição errada do real constitui uma realidade em si, evidentemente, mas uma realidade alternativa à real?

E será eticamente censurável a conduta da Clarinha, privada dos direitos da sua juventude por um amor ausente?
E a colega, ferida nos seus anseios de mulher pela lança do ciúme, será que pecou?

O Tó ao princípio nem quis perceber, mas a linguagem era clara, não havia maneira de não perceber.
Um frio enorme varreu-lhe o ventre, seguido de estupefacção e fúria.

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