Wednesday, May 31, 2006

 

A Ponte da Glória IX, Salto Selvagem

Como tudo o que começa começou de surpresa.
Num dia, uma hora, um momento, não havia. No dia seguinte a coisa insinuou-se nas páginas interiores dos jornais.
Primeiro de mansinho, sub-reptícia como um fait divers, uma notícia daquelas de cantinho numa página par, tipo embate de pomba faz abortar descolagem de Boeing.
Um miúdo pintado de cores garridas tinha preferido violar a hora da escola e saltar.
Apesar de grave a violação da hora da escola isso só por si não seria notícia.
Notícia era que não saltara da Torre mas da plataforma da ponte.
Aparentemente um grupo de colegas da escola juntara-se lá e assistira ao salto, a Polícia interrogava-os ainda à hora do fecho desta edição.

Ninguém ligou muito.
Uma quebra das regras é uma quebra das regras e é notícia, mas é preciso haver um seguimento.
O interesse humano da notícia era diminuto e a quebra das regras de salto era pouco para merecer mais que uma atenção marginal.

Mas no dia seguinte três miúdos faltaram à escola para se atirar da plataforma da ponte. Juntos.
As autoridades mandaram limpar o chão dos cadáveres e cercaram de vedações de arame a plataforma tornando impossível o salto a partir dali.

No dia de amanhã do dia seguinte um grupo de dez jovens faltou à escola para se atirar do andar mais alto do prédio mais alto da cidade.
Espalharam-se na Avenida, os corpos esborrachados a cair do céu sobre os transeuntes aterrorizados, os gritos de angústia, os tejadilhos dos carros esmagados, o sangue a correr livre em direcção às sarjetas lavado pela chuva grossa que caia com os corpos adolescentes.

A Polícia encontrou restos de celebração no terraço: Latas que em tempo tinham sido de cerveja e que agora eram de ar sujo, cinzas de fogueiras rituais, um mau cheiro generalizado (pois não é por acaso que se chama adolescente ao adolescente, ele cheira de facto, principalmente quando sujo ou assustado).

Todos os moços tinham enrolada à volta da cabeça ou do sítio onde esta tinha estado uma faixa amarela.

As autoridades fecharam o acesso aos prédios mais altos.
Um decreto foi proclamado, afixado nos pontos altos, apregoado na televisão: Em caso nenhum seria permitido o salto em outro local que não na Torre da Glória.

O decreto, como em geral acontece aos decretos, apenas foi visto como uma sugestão, pelo que os jovens continuaram a saltar.

As autoridades fechavam o acesso aos prédios mais altos, grupos de jovens, de faixas amarelas, azuis, encarnadas, forçavam os acessos e lutavam entre eles pela posse dos melhores lugares de salto.

A Torre perdia parte da sua Glória. O Salto selvagem estava na moda. Agora só famílias de turistas a procuravam para ver os saltadores e estes começavam a rarear nela.

Os apostadores seguiam os grupos de jovens como ratos encantados por uma flauta de morte. Apostavam nas cores.

As autoridades reforçavam a protecção dos terraços dos prédios altos, os miúdos saltavam de prédios mais baixos, qualquer sexto andar lhes servia.
Muitos não chegavam a morrer, um mau salto ou um arrependimento em peno voo fazia-os cair mal e ficar estropiados para sempre mas vivos, a cargo das famílias ou da Segurança Social.

Proibiu-se as apostas fora da Torre, aumentou-se artificialmente o valor dos prémios das apostas nos saltos legais.

Nada.

Os rapazes tomavam conta da cena, os apostadores clandestinos faziam fortunas.
Gangs de suicidas guerreavam-se nos subúrbios e moviam-se na clandestinidade sempre à frente da Polícia.

Num recontro entre gangs três jovens acabaram mortos a tiro.

Começaram a construir-se torres clandestinas, erguidas de um momento para o outro e abandonadas pelos construtores quando deixavam de as usar, torres erguidas ao céu para acolher voos clandestinos, de que as autoridades não conseguiam impedir a proliferação.

Os gangs começaram a tomar conta de partes da cidade, as apostas oficiais já não davam qualquer lucro, a Torre da Glória começava a revelar-se um elefante branco, o comércio ressentia-se.

A situação não era eleitoralmente agradável.

De fora e de dentro os inimigos espreitavam.

Thursday, May 18, 2006

 

A Ponte da Glória VIII, Feriado Municipal

Feriado.
O Município decidiu criar um feriado dedicado ao DIA DA TORRE.
Foi a pedido do comércio local.

Tinha-se chegado à conclusão que o movimento à volta da Torre beneficiava o comércio e revitalizava a actividade da cidade em geral, as pessoas andavam mais satisfeitas, trabalhavam mais, consumiam mais, produzia-se mais riqueza.

A criação de um feriado dedicado à Torre não só traria uma vantagem directa com o aumento dos consumos ligados à frequência da Torre e às suas adjacências mas ajudaria a enaltecer o espírito que levara à sua construção, esse mesmo espírito que permitia o aumento da riqueza e portanto do bem estar colectivo.

Discutido o projecto na Assembleia foi de imediato aprovado.

Foram tomadas as disposições necessárias.

No dia da Torre as crianças das escolas desfilariam em frente à Torre (não demasiado próximo, pois temia-se que algum salto imprevisto pudesse assustar as almas jovens e tenras).
As meninas depositariam flores à volta da base do monumento, nos nichos próprios.
Os Bombeiros passariam com fanfarra e uniforme de gala, exibindo as novas viaturas.

Esperava-se que nesse dia os saltadores correspondessem à solenidade do momento.

Wednesday, May 17, 2006

 

A Torre da Glória, o respirar suave

O respirar suave alterou-se.
Deu voltas na cama e pensou que estava a sonhar que eram horas de acordar.
Eram.

Levantou-se e reparou que o lugar ao seu lado na cama estava vazio.
E frio.

«É porque já se levantou.» Pensou o respirar suave. «Foi mais cedo para o trabalho. «Boa viagem!»

Todos os dias aquele homem se tornava mais chato, ultimamente dava-lhe para acordar cedo, incomodando-a, felizmente hoje não fizera barulho.

Dia de folga do respirar suave.
Parte ao encontro de outro respirar suave com quem combinara de véspera.
Dar um passeio.
Às compras, fazer qualquer coisa de divertido.

Encontraram-se no café do costume.

«Apetece-te ir à Torre da Glória ver os saltadores?»

Desceram a Avenida, conscientes dos olhares dos homens que as admiravam. Compraram gelados e riram-se deles. Foram de eléctrico, sempre a rir.

A sua alegria contrastava com o ar nervoso dos jogadores viciados que seguiam também no eléctrico.

Um pulo até à torre, quando lá chegaram era meio da manhã, uma hora pouco frequentada por saltadores mas apesar de tudo talvez tivessem alguma sorte. Dizia-se até que os melhores artistas procuravam um público de qualidade, não o público de Domingo à tarde mas de um dia de semana de manhã, reformados, pessoas com folgas no trabalho a meio da semana, donas de casa.

Subiram e o vento fresco do alto da torre avivou-lhes as cores dos rostos.
Eram um espectáculo bonito de ver e algumas pessoas olharam-nas por momentos, embora logo voltassem a atenção para a borda da torre.
É que por vezes havia saltadores que se faziam acompanhar da família como se fossem dar a volta dos tristes, compravam algodão doce para os miúdos e um gelado para a patroa, sorriam como podiam e quando ninguém esperava corriam para a borda e saltavam de surpresa para o ar. As pessoas gostavam de ver a cara de espanto dos parentes nessas ocasiões.

O respirar suave pensou em como seria bom que o gajo resolvesse saltar e a largasse de vez, a deixasse viver a vida a que tinha direito.

Mas essa sorte não tinha ela, o tipo era demasiado cobarde.

Wednesday, May 10, 2006

 

A Ponte da Glória VI, a insónia

Nessa manhã acordou às quatro.
Às quatro ainda a claridade não se deixava adivinhar no escuro do quarto apenas iluminado pelos cardinais encarnados do despertador.
A seu lado um respirar leve.

Tentou virar-se de lado, para o outro lado e outra vez para o outro lado. Era escusado, não ia conseguir dormir mais.
Há meses que era assim, dormir sobressaltado duas, três horas, acordar sem nada para fazer.

Cedo demais para tomar o pequeno-almoço.
Cedo demais para ler, as letrinhas começavam a fugir dos carreirinhos como formigas quando se pisam. Nem sequer a leitura lhe dava o gosto de uma companhia.

Mais um dia assim.
E há tanto tempo que os dias eram assim.
Um frio danado atravessava-lhe o coração e arrepiava-o.

Cansado.
Mais um dia de cansaço.
Estava farto. Só de pensar em cumprir a rotina magoava-o, tomar o pequeno-almoço, lavar-se, ir trabalhar, mover papéis do lado esquerdo da secretária para o direito.

Acho que hoje não consigo.
Acho que amanhã também não.
Acho que nunca mais consigo.

De qualquer modo vestiu-se. Cheio de silêncios para não acordar o respirar suave que se mantinha na cama, indiferente.

É hoje.
Vou acabar com isto, estou farto.

Este pensamento por estranho que pareça transmitiu-lhe alguma esperança.
Saltar.
No ar.
De forma olímpica, esquecer, pôr termo a isto.
Sim.
À medida que a ideia tomava forma na sua cabeça a dor afogava-se submersa pela resolução.
Saltar.
No ar.
Esquecer.

Lentamente saiu de casa.
Deixou o carro na garagem e foi a pé.
Pelo caminho às vezes reflectia: e se apesar de tudo, mas isso apenas lhe fazia doer mais.

Não!
Tomara uma resolução.
O sentimento de ter tomado a resolução, de agir como senhor de si próprio pela primeira vez em tanto tempo animava-o. Dava-lhe o alento necessário a cortar o ar pelo passeio na manhã ainda fria.

Ainda longe começou a ver a Torre.
Era feita para isso, para que ao longe difundisse esperança aos que desesperavam, para que ao longe desse o alento aos que não viam outra maneira.
Aproximava-se e os contornos esclareciam-se agora que o Sol começava a desenhá-la por detrás.

Chegou à torre já dia claro, ainda cedo.
Era uma hora de sossego.
Tinha um elevador à sua espera.
Viajou sozinho numa carruagem para vinte pessoas.

Lá em cima cinco ou seis noctívagos olharam-no com curiosidade. E mantiveram os olhos fixos em si enquanto disfarçava o motivo que o levara lá.
Mas o seu ar era inconfundível.
Eram quase profissionais naquilo. Olharam para si e reconheceram aquele misto de desespero e coragem que caracteriza os saltadores.

Olharam uns para os outros e trocaram olhares de apostas que se coibiram de narrar alto para não o perturbar, para o poupar ao vexame de ver a sua morte disputada.

Dirigiu-se à borda da torre.
Para trás de si deixava uma vida de frustrações e desespero, travada em cinzentos pastosos.

Passou uma perna, a direita, depois a esquerda, segurou-se com os bicos dos pés no chão por debaixo da grade de protecção e com as mãos agarradas ao corrimão.

Gostava de ser como aqueles heróis que se atiravam em mergulho para o ar caindo com graça até a cabeça se lhes esmagar no chão.
Mas não era. Como em tudo na vida era deselegante e pesado.
Até na morte.

Largar as mãos, deixar-se desequilibrar para trás, deixar-se cair.
Os olhares dos assistentes fixavam-se nele à espera, gulosos.
Tinham-se aproximado discretamente e com um ar compungido da beira. Queriam ver o voo.

Olhou para baixo por entre os pés.

O chão parecia tão longe.

É só largar as mãos, pensou, só largar as mãos, demorava no pensamento.
Foi um olhar de dúvida de um dos espectadores que o fez duvidar de si.
Não tenho coragem!
Começou a passar a perna direita por cima da vedação outra vez, agora para trás.
Parou a meio.
Não sou homem não sou nada, tomei uma decisão e vou mantê-la, é só largar as mãos.
Respirou fundo, preparou-se para largar as mãos e percebeu que não ia conseguir.

Passou novamente a perna, a outra, correu rápido até ao elevador com vergonha do desprezo no olhar dos mirones.

Ainda viu as notas começarem a mudar de dono.

O elevador estava vazio, oco.

Completamente desesperado afastou-se foi trabalhar, mudar papéis do lado esquerdo da secretária para o lado direito.
Era para o que servia.

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