Tuesday, October 23, 2007

 

O Blues

É pá, a mulher cantava tudo e tudo bem.
Está lá escondido pelo som de uma orquestra de cordas um blues, "Sempre e Sempre Amor", com letra de David Mourão Ferreira e música de P. G. Redi (também não sei, só conheço o autor da letra).
Imagino Amália Rodrigues como uma pessoa com um sentido de humor muito especial que lhe permitia cantar blues, mariachis, mornas, boleros, fado, com uma mestria extraordinária.
E que conseguia cantar "Vou dar de Beber à Dor" em francês sem se escangalhar a rir.

 

El Mariachi

Estou a ouvir Amália Rodrigues a cantar um Mariachi (!), Fallaste Corazón, de Cuco Sánchez, numa gravação de 1955, o que requer muito silêncio para não ouvir o ruído de fundo dos carros na rua e muita paciência para não ouvir o ruído de fundo dos carros na própria gravação.Sabia que Amália cantava quase tudo mas não sabia esta dos mariachis.
O disco chama-se "Amália Rodrigues, Fados e Flamencos".Pois, mas mariachi é mariachi, flamenco é flamenco. É como incluir um samba num disco de fados (já tangos, boleros e até mornas é comum).

Friday, October 19, 2007

 

O rapaz, a moto e o medo.

Passou por mim pouco depois de Vendas Novas.
Lembro-me de ter pensado que ia muito depressa para o traçado da EN 114.
Está bem, a maior parte do percurso são rectas.
Mas há lombas, há curvas, há solavancos no alcatrão, há camiões, há outras coisas inesperadas que levam a moderar a velocidade.
Mas ele nada.
Avançou por ali como se o mundo fosse já acabar e não tivesse muito tempo para gozar a vida.

Voltei a encontrá-lo pouco antes de Montemor-o-Novo.
Primeiro foram as luzes dos carros que vinham no sentido contrário.
Luzes de aflição, o medo estampado nos máximos com que eles me desviavam da via agora estreita demais para dois carros ao mesmo tempo, o medo da mudança de mão de trânsito, que numa estrada movimentada é sempre um risco.
Depois foi um ajuntamento. Carros e pessoas que tinham saído dos carros e estavam agora a pé juntavam-se na estrada.
Aproximei-me e vi que o ajuntamento rodeava com um ar angustiado um espaço delimitado do chão.
Só podia ser o que era. Ao chegar lá vi o rapaz da moto. Deitado no chão, ainda de capacete, blusão de cabedal branco, de barriga para cima.

Como nota de alívio vi-o mexer um braço, o esquerdo, e falar com as pessoas que o rodeavam. Pelo menos falava. Mas deitado, sempre deitado.

Ainda antes de chegar a Montemor-o-Novo a ambulância rasgou o ar com os seus gritos de aflição.
E os carros. Todos tão devagar. De medo.

Tuesday, October 16, 2007

 

Crónicas de viagem do meu tio que se perdeu na América e cujo achamento se comemora no primeiro dia de Março de cada ano. O Miradouro.

Crónicas de viagem do meu tio que se perdeu na América e cujo achamento se comemora no primeiro dia de Março de cada ano.

Passa-se mais uma curva na estrada e antes da pequena subida que leva ao Miradouro da Alvorada lá está ele.
Redondo como só um sinal de proibição consegue ser, aparentado com o “sentido proibido” e com o “proibido a veículos de tracção animal” desenha-se encarnado e branco: “proibido usar óculos”.
Foi por isso, disse para mim, que tu quiseste que eu te trouxesse cá, para ver a vista como ela merece.
O meu tio sabe que sem óculos eu vejo a realidade de uma forma pouca habitual. Assim mais baça, mais escorregadia. Assim como se estivesse a tentar apanhar um leitão pintado de gordura ou o sabonete no chuveiro.
Lá parei o carro conforme pude.
É estranho, é o único sítio que eu conheço em que é proibido conduzir de óculos mas ninguém desobedece ao sinal.
Será por medo do Grande Guarda que se oculta no nevoeiro da mente e que espera pelos infractores como a Brigada de Trânsito escondida na sombra inocente de um chaparro na berma da estrada?
Ou será o Grande Guarda um mito urbano?
Fora do carro o vento alerta para a paisagem. Uiva-nos para dentro do casaco e aperta-nos o colarinho em arrepios de frio. Seja Verão ou Inverno a paisagem é sempre fria.
Lá em baixo um rio (ou será um grande lago?) com luzinhas a meio.
A meio e parece que do outro lado também. Já sei de experiências anteriores que aqueles borrões na distância são luzes.
O meu tio confirmou, eram mesmo luzes.
Antes, a meus pés, uma mata de carvalhos, ou seriam pinheiros, o meu tio não me respondeu quando lhe perguntei, deslizavam devagarinho para dentro do lago e iam molhar as raízes na água.
Bonito. O céu azul, ou cinzento arrefecia com clareza.
Voltámos para casa.
Depois da curva já pude voltar a pôr os óculos e tudo parecia estar no mesmo sítio.
O tio a meu lado começou a fingir que dormitava.

Monday, October 15, 2007

 

Pop-Rock

Às vezes a minha fada madrinha dorme no meu carro e modifica-o.
Não é que o transforme em abóbora à meia-noite, ou que me transforme a mim em rã à espera de uma princesa para me apertar a mão ou lá o que é.
É mais o sintonizar de manhã o rádio do carro numa estação daquelas muito jovens, muito frescas.
E ao ligar a ignição encontrar-se uma voz desconhecida a dizer, "Olá! Eu sou a sua emissora pop-rock da manhã, aqui pronta para o fazer abanar o capacete!"

Há um tempo das uvas, um tempo das cerejas e um tempo de desligar o rádio.
Um é o Outono, outro a Primavera e o outro é a Estação Pop-Rock.

Imagine o prezado leitor duas rodas dentadas. Encaixadas uma na outra de modo a evocar o início da revolução industrial e óleo de máquina com um acentuado cheiro cinzento-sujo.
Passe-lhes pelo meio um jogo de Mikado inteiro, um pacote de esparguete cru e duas gemas de ovo.
Quando começar a ficar tudo com um ar brevemente enjoativo junte-lhe 250 gramas de mel.

E mude para uma estação clássica.

Thursday, October 11, 2007

 

Ainda a miopia

De repente o pano da mesa de bilhar começou a encurvar-se.
Arredondou suavemente como o ventre de um modelo de lingerie exposta num painel publicitário na beira de uma rua ensolarada.
O verde do pano arrelva-se de contente, enrosca-se e ronrona.
Os buracos da mesa de bilhar transformam-se em buracos de campo de golfe.
Carruagens de Metro encomboiam-se na paisagem, entrando e saindo pelos buracos do relvado da esquerda para a direita.
De vez em quando a sensação de que falta um pedaço da cena, que algo terá sido comido por um piscar de olhos ou que um pássaro muito rápido, invisível de tão rápido, mergulhou e aparou no bico um comboio, levou-o consigo no céu laranja e cinzento até ao Sol, onde tem o ninho. Vê-se um comboio a sair de um buraco mas já não se o vê a entrar no próximo.
Flâmulas escorrem a assinalar os buracos, cheias de maus pensamentos.

Ao fundo, à direita, um bando de anjos aguarda soturno a chegada do Metro.
Têm chapéus de coco, guarda-chuvas e uma pasta na mão esquerda. As asas foram diligentemente aparadas e engomadas. Cheiram a manhã cedo.
Destacam-se no contra-luz em que foram recortados de mãos dadas em harmónio.
A miopia não lhes permite ver o destino do Metro no écran da estação. Arriscam um à sorte.
Como não são criaturas com destino certo qualquer destino lhes serve.
Prendem as cordas que trazem à cintura à última carruagem e mergulham nas entranhas da terra.
Vastidões cinzentas aguardam-nos mergulhadas na penumbra.
Vão-se os olhos habituando e eles, pés assentes nos carris, deslizam presos por cabos, sulcando as trevas e deixando atrás de si um rasto de espuma branca.
A espuma amarelece com o tempo e acaba por se soltar. Parte também ela para o ninho do pássaro que se esconde na sombra por detrás do Sol.

Às vezes tudo empalidece.
O som das coisas é amortecido por uma caixa de algodão doce.
Um quebra-luz impõe-nos uma espécie de escuridão sonora.
Um fado é murmurado pelos anjos em coro .
Estes têm agora a cor de cera e continuam a esquiar agarrados ao Metro. Nas profundezas. Uma estação aproxima-se e sopra-lhes um raio de luz.
Não o conseguem ver, entretidos que estão a segurar-se aos cabos que os prendem ao comboio.

 

à Memória

Primeiro reparei que todos os músicos que ouvi no caminho para cá já tinham falecido.
Depois dei por que já ontem, para lá, os músicos que ouvi também tinham falecido.
Não se tratou de ouvir obras de compositores clássicos (metáfora para compositores já partidos, que já não estão entre nós) mas de gravações de executantes que entretanto faleceram após a gravação.
Nem foram mortos de propósito para que mais ninguém pudesse ouvir a sua música senão não teria sido feita a gravação.
Estavam vivos quando a gravação foi feita dado que o leitor de CD do carro não tem modo pé-de-galo.
Curiosamente tive oportunidade de os ouvir em presença a todos eles, Amália Rodrigues, Betty Carter e Lester Bowie, e foram grandes momentos.
E não teria reparado nisto se por acaso uma das músicas do Lester Bowie não fosse precisamente uma homenagem aos músicos já falecidos.

Uma história de ficção poderia começar assim mesmo, um compositor que começa a trabalhar numa encomenda de uma missa de requiem mas que morre antes de a poder terminar.
Seria uma boa ideia mas não seria muito original.

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