Wednesday, July 26, 2006

 

A Torre da Glória XVI, Mulheres!

Apanhado em flagrante.
Filmado a atirar o cego do prédio abaixo.

Tinham também filmado a forma graciosa como o cego caíra, os braços girando à procura de algo a que se agarrar, como um náufrago a tentar agarrar-se a uma pena de gaivota.
Um náufrago aéreo sem possibilidade de apagar o afogamento. Neste caso o splash no pavimento, o corpo retorcido, a cabeça rebentada.

A mulher disse-lhe que tinham isso tudo em arquivo.

Pertencia-lhe. Mais valia ter morrido.

Gentilmente a sua captora explicou-lhe que tinha três hipóteses: Ou se atirava do prédio abaixo, o que iria ser difícil porque ela tinha os meios de o impedir, ou passava o resto dos dias numa prisão ou lhe facilitava a vida a ela, fazia-lhe uns favores em troca de o filme da morte do cego permanecer perdido no arquivo.
Ou seja, pertencia-lhe, mais valia ter morrido.

O que tem de ser tem muita força.
Ainda perguntou se isso dos favores lhe dava alguma contrapartida, tipo assistência na doença mas a mulher limitou-se a ignorá-lo: «Vai para casa e espera por notícias minhas». E foi-se embora.

Assim se entrega uma vida.
Não saltara por amor de uma mulher que o desprezara precisamente por não ter tido a coragem de saltar por amor dela.
Caía agora nas garras de outra megera que o ia espremer com certeza.

Não tenho sorte nenhuma com as mulheres.

Pensou novamente em saltar, em mostrar à do prédio do lado que era capaz. Mas pensou por outro lado que não percebia muito bem que vantagens poderia haver em matar-se tão novo.
Ainda por cima nessas circunstâncias: Para mostrar a uma pessoa que só o queria ver morto que era capaz de se matar por ela!

Ia começar a descer as escadas do prédio quando um ligeiro restolhar atrás de si o fez voltar-se.

Uma pomba, a do bico esquisito, pousou suavemente no seu ombro direito como se lhe quisesse dizer alguma coisa.

Saturday, July 15, 2006

 

A Torre da Glória XV, A Pomba da Paz.

A coisa tornou-se-lhe clara. Nunca deixara de ser monitorizado pelo gang dos amarelos.
Não havia nada a fazer senão render-se, aceitar o seu fado, procurar o cego e entregar-se à sua misericórdia, se houvesse nele o espaço para ela.

Encontrou-o no jardim, claro, a contar pedras, sentado.
O cego cheirou-o a aproximar-se e não disse nada por um momento.

No jardim as folhas dos plátanos outonavam suavemente o chão, uma mulher varria-as com calma para os cantos de modo a não assustar as pombas que debicavam sem grande esperança, mais por desfastio, o chão.

Em volta, como se lessem o jornal, falassem do tempo, admirassem as flores tardias de Outubro, meia dúzia de rapazes esperavam atentos.
Em cada botoeira, colarinho, boné ou t-shirt uma marca amarela a evocar a faixa identificava-os como membros do gang dos amarelos.

Abeirou-se do cego e este:
«Agora sabes»
«Agora sabes o teu futuro», disse-lhe.
«O tempo de reflexão afastou-te da deriva em que andavas?»

Que sim, que compreendia agora o vazio, que o atraía agora o nada, que a vida começava a fazer sentido. E que o sentido da vida é o que tudo o que nasce morre.

No canto do jardim uma folha de plátano caprichosa demorou o voo um pouco para cheirar uma roseira antes de se deixar cair no solo para repousar.

Que sim, que compreendia agora o vazio que fora a sua vida, que estava desejoso de se juntar a eles.

O cego trazia agora um saco maior. Dele tirou um pão e uma garrafa de água.
Deu um bucha do pão ao rapaz e disse-lhe que comesse.
«O pão, o trigo, simboliza o esforço da vida, o trabalho e o seu resultado. Simboliza a cooperação entre os membros do nosso gang, unidos como os grãos do trigo na espiga.
Comeu o resto.»

Passou-lhe a garrafa da água.
«A água simboliza o que há de comum a todos os seres vivos, pois todos os seres vivos são feitos de água e a água é a vida que celebramos com as nossas mortes.
Por isso a partilho contigo.
Bebe!»

Deu-lhe também um cachecol amarelo.

«A cerimónia será na próxima segunda-feira, vem ter aqui.»

Com essa se despediu.

Recolheram-se os do gang às suas tocas.
O rapaz a casa.

Sós, no largo do jardim, a mulher que varria as folhas e os pombos.

A mulher pegou no auscultador e disse que não lhe tinha sido possível apurar o local mas que seria na segunda – feira e que bastaria seguir o rapaz.
Uma pomba branca voou para um telhado, enfiou o bico na tomada de uma antena parabólica aparentemente ligada à TV e comunicou o que tinha ouvido.

Só os plátanos se mantiveram indiferentes.

Segunda – feira.
Bem cedo.
Um toque na janela bastou para o acordar.
Um rapaz de camisola amarela. «Põe o cachecol, não comas nada.»

Seguiu-o até à cave de um prédio degradado, de oito andares, na avenida. Ao fundo a torre em toda a sua Glória envermelhecia de sol nascente. Dentro da cave os membros do gang abriam boiões de iogurte com sabor a morango que comeram na penumbra.

Distribuíram-se as faixas amarelas para pôr na cabeça.

Pairava no ar viciado uma corrente de sentido da vida. Todos tinham o aspecto compenetrado de quem se achava prestes a cumprir uma missão. A missão, aquela para que tinham sido concebidos. Aquela que aceitavam conscientemente.

Seguiu-os enquanto subiam as escadas do prédio através dos buracos no arame farpado.

O aroma do iogurte com morango toldava-lhe a memória do tempo presente e apenas pensava no devir.
Continuou a segui-los pelos andares de paredes gretadas e olhares esconsos de crianças assustadas pelo seu ar marcial, de faixa amarela sobre os olhos carregados a disfarçar o nervosismo.

Chegaram ao telhado e espalharam-se.

Ficou na ponta direita e olhou para baixo.
Do outro lado da rua transversal à avenida uma mulher penteava o cabelo perto da janela e olhou-os. À distância parecia – lhe que o olhar dela repousava em si.

O respirar suave dela alterou-se, o calor que lhe invadia o peito e lhe eriçava os mamilos tornava-lhe a respiração carregada enquanto via o bando de jovens a preparar-se para o salto.
Atrás de si o barulho do motor eléctrico da escova que o marido usava para limpar os dentes, em pijama, indiferente às causas da alteração do ritmo respiratório da mulher.

Para ele seria apenas mais um dia a movimentar papéis da esquerda para a direita.

Para ela o redescobrir de emoções que há muito não sentia. Aquele rapaz, o da ponta. Até aquela distância lhe parecia sentir o seu cheiro, o toque da sua pele.
E ia assistir dentro de momentos à sua morte. A antevisão do corpo jovem esborrachado no pavimento excitava-a de um modo avassalador.

O rapaz via-a. Não conseguia tirar os olhos dela. Nunca na vida lhe parecera ver criatura tão suave, tão bela. E iria morrer na sua frente, para gáudio dela. Seria isto que aquela Deusa queria dele?

O cego deu a ordem, os rapazes deram-se as mãos e correram cabisbaixos para a borda do terraço.
Correu com eles.
Mas chegado à beira não conseguiu saltar.
Não o permitiram os olhos, o peito daquela mulher em quem cravara o olhar como um punhal que o trespassava a ele e a ela.

Pegou no cego e apanhou-o de surpresa, deitou-o a ele do oitavo andar abaixo.

Fez um belo efeito ao cair.

Olhou novamente para a janela da mulher do peito exaltante e ela já lá não estava.

Correu escadas abaixo. Postou-se à porta do prédio da mulher e esperou que saísse. Se estava a pentear o cabelo de manhã tão cedo naturalmente iria sair de casa.

Esperou-a um bocado. Sentiu o elevador a descer, viu-a passar com o marido. Olhou-a. Ela também o olhou a si e ele nunca na vida vira em olhos tão formosos uma tal expressão de desprezo. Que visão dolorosa. Lia-se-lhe nos olhos «mais um cobarde!». Lia-se-lhe nos olhos a repugnância por si e pelos da sua espécie.

Desmoralizado, a alma envolta em ligaduras sangrantes, voltou ao prédio e começou a subir ao terraço. Desta vez seria capaz de mostrar aquela Deusa do que era feito por dentro. Esperaria que chegasse a casa à noite e atirar-se-ia para reconquistar a sua admiração, para fazer com que aqueles olhos não o voltassem a castigar com a dureza que lera neles e que sem dúvida merecera por a ter privado do prazer que o seu peito inflamado pedia.

Nas escadas cruzou-se com uma mulher. Aquela cara não lhe era estranha mas ela passara por ele com toda a indiferença de quem não o conhecia de lado nenhum. Seria alguém parecido.

Subiu ao terraço. Sentou-se num canto. Fechou os olhos a chorar. Sentiu um ligeiro restolhar a seu lado e era uma pomba branca com um bico esquisito, parecia uma ficha das de introduzir nas tomadas da electricidade.

De seguida foram vários homens. Quis fugir mas eles cercaram-no e apontaram-lhe armas. Um deles imobilizou-o e algemou-o. Se calhar eram polícias, pensou.

A mulher com que se cruzara nas escadas apareceu, e ele lembrou-se de onde a vira. No jardim a varrer folhas.

A pomba entoou um mariachi e voou para outro lado.

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