Monday, January 30, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte XII

Achmed despediu-se cortesmente de Her Wah e voltou para casa.

Tomou um banho de imersão e enquanto secava a pele e parava de suar manteve-se de toalha à cinta (uma homenagem que às vezes prestava à vizinha do apartamento em frente que tinha vista panorâmica para a sua cozinha) gozando o tempo quente.
Sentiu fome e começou a preparar o jantar.
Separou em cima da mesa da cozinha tomates e alface, pepinos e aipo, alho francês e rabanetes.
Migou um pouco de couve roxa, couve lombarda e cenoura e pensou que com um pouco de azeite, sal e orégãos dava uma boa salada, ou uma bela composição pictórica.

Cortou uns pimentos encarnados e verdes em pequenos cubos, misturou-os de uma forma patriótica e resolveu levá-los ao lume com carne picada e noz muscada.

Estava nesses trâmites quando começou a sentir o perfume de Her Wah a passar por debaixo da porta de entrada de casa, como um doce fantasma de Verão.
Sorriu e foi abrir.

Antecipadamente, enquanto se dirigia à porta, saboreou a visita de Her Wah:

1. Aberta a porta no patamar Her Wah olha-o com meio sorriso e ele atrapalhado para não deixar cair a toalha. Manda-a entrar e pede-lhe que se sente. Tencionava sair e ir-se vestir enquanto ela dançava até ao sofá mas ficou demasiado preso pela visão dos passos dela, das sandálias pretas enroscadas à volta das pernas, que ficou mais um bocadinho para lhe estender um cinzeiro com a mão direita enquanto segurava melhor a toalha com a esquerda.

Desta vez teve direito a um sorriso inteiro a despachá-lo para se ir vestir enquanto a cinza era delicadamente equilibrada na ponta do cigarro num exercício de malabarismo antes de ir parar ao cinzeiro e aí aguardar a remoção para o cemitério das cinzas.

Vestiu-se depressa, ainda a tempo de a ver acender um novo cigarro e começar a projectar o fumo de encontro ao raio de Sol que entra pela janela, fazendo o raio de Sol envolver-se em turbilhões de uma beleza barroca e dando à visão de Her Wah a dimensão de uma deusa. Talvez a deusa do fumo ou a das pernas traçadas protuberantes a partir do sofá.

Caí numa armadilha, pensou enquanto admirava a cor do bâton deixada pelos seus lábios na ponta do cigarro esmagado meticulosamente no cinzeiro.

Um gato de bom gosto aproxima-se de Her Wah e ela faz-lhe uma festa.


2. Aberta a porta no patamar Her Wah olha-o com meio sorriso e ele atrapalhado para não deixar cair a toalha. Tem um cigarro nos lábios, o que a faz piscar um olho como num gesto traquina. Tira-o com a mão livre, a que não tem um pássaro na mão.
«Tens um pássaro na mão.»
«É um cuco, encontrei-o no chão. É novo, está todo molhado, coitado do bicho, não me queres ajudar a tomar conta dele? Dou-te isto se me ajudares.»
E tira do saco de pano a tiracolo uma romã.
«Entra, olha a minha figura, estava a tomar banho, senta-te. Tens aqui um cinzeiro. Já volto.»

Volta e senta-se junto dela, a admirar o cuco e o cabelo dela, não certamente por esta ordem.

Estranha rapariga, Her Wah, aparece às vezes sem se fazer anunciar, despeja umas toneladas de charme na sala de Achmed, deixa-lhe o ar embaciado e os cinzeiros cheios de beatas e depois desaparece no ar como o fumo. Às vezes ainda deixa uma romã, outras vezes só deixa saudades.

Achmed colecciona as pontas de cigarro dela, mas esconde-os para fingir que não tem esses hábitos malsãos. Colecciona as pontas dos cigarros dela, os efeitos visuais, colecciona os olhares que lhe deita, o cheiro do fumo do cigarro, o cheiro do cabelo dela, a cor dos olhos e da pele.

«Vamos tratar do cuco?»

3. Aberta a porta no patamar um gajo com ar de vendedor de enciclopédias faz um passe de mágica em direcção a Achmed.
Este sente-se paralisado, só os olhos lhe obedecem.
Da sombra emergem três criaturas repelentes que pegam em si e o levam para a sala. Divertem-se por um instante a pô-lo em poses obscenas enquanto o vendedor de enciclopédias entra e se dirige ao sofá em que ainda há instantes na imaginação de Achmed Her Wah se estendera em paisagens de beleza.
O vendedor de enciclopédias senta-se, tira a carteira do casaco e de dentro dela sai uma enciclopédia luso brasileira numa versão de luxo com enfeites em ouro de 14 quilates que se dirige às estantes da sala de Achmed e as cobre de uma maneira sinistra, emparedando o Espinoza, o Clifford Simak e ainda as obras completas do Miles Davis.
Numa cópia barata na parede de um quadro de Dali Gala ri-se da figura de Achmed.
As criaturas repelentes fecham os estores da sala, Achmed está isolado do mundo.
Tiram-lhe a toalha e põem-se a rir dele.
O vendedor de enciclopédias começa a fumar um charuto e a atirar o fuma para a cara de Achmed. Tira um cinzeiro da algibeira, põe-no na mesa do centro da sala e observa enquanto o cinzeiro se reproduz e as réplicas começam a descer da mesa para o chão e rastejam de forma sinistra na direcção de Achmed.
Achmed tem medo, os cinzeiros começam a trepar por si acima, outros dispõem-se à sua volta para observar.
Os que trepam estão agora nos joelhos, Achmed treme, cobrem-no até à cintura, ao peito, cobrem-no todo, deixam-lhe só os olhos de fora.
Já não tem dúvidas sobre a verdadeira identidade do vendedor de enciclopédias. Os cinzeiros começam a falar uns com os outros e dentro em pouco apenas se ouve as suas vozes, cada vez mais altas e perturbantes.
Uma ordem seca do Coleccionador de Momentos fá-los calar-se.
À vozearia segue-se um silêncio assustador, como a calma que precede a tempestade.

Imagens de Her Wah atravessam-se na mente de Achmed.

De repente da casa de banho o patinho de borracha, o fiel companheiro de banho de Achmed, emerge para a sala, grita agitando à sua frente um frasco de After Shave. Os cinzeiros fogem a refugiar-se nos bolsos do colete do Criador de Momentos. As criaturas horrendas ajoelham-se tomadas de pavor.
O Coleccionador de Momentos pega numa esferográfica e desfere um golpe mortal no patinho de borracha que se desincha assobiando.
Entretanto o efeito mágico que a sua força exercia sobre Achmed pára por momentos, o que lhe permite agarrar o vendedor de enciclopédias pelo colarinho e expulsá-lo de casa.
A enciclopédia segue-o com a altivez da dignidade ferida.
As criaturas horrendas oferecem-se para ajudar Achmed a limpar a sala, o que este recusa. Vão se embora.

«Meu fiel patinho», geme Achmed.
Abeira-se dele e soergue-lhe a cabeça.
«É tarde, a mão fera do Coleccionador de Momentos pôs termo à minha participação neste folhetim, feliz por te ter salvo»
E morre.

Toca outra vez a campainha da porta.

A suivre…

Monday, January 23, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte XI, A Vingança do Coleccionador de Momentos

O Coleccionador de Momentos ligou o Espelho Mágico que tinha por cima do lavatório na casa de banho e que o fazia parecer mais novo, mais mau, mais inteligente ou menos isso tudo com o rodar de uma espécie de reóstato de qualidades e sintonizou o modo de pesquisa.

Acedeu a um motor de busca e seleccionou Achmed. Estranhamente apenas aparecia uma referência em vez dos milhares que procurava.
«Espelho meu, diz-me, o que é que se passa com as minhas criaturas? Onde estão os outros Achmeds?»
Que se tinham reintegrado, disse-lhe o espelho, que Achmed retomou o curso do tempo, ajudado por Her Wah. Provou a Romã da ciência, agora não quer outra coisa.

O Coleccionador de momentos pensou em largar o Projecto Achmed e criar outro, assim a modos que mais subserviente. Mas não podia ser, era um Coleccionador de Momentos conhecido pelo seu mau feitio e não podia perdoar.
Não podia perdoar nem a ele nem a Her Wah. Quem a mandara revoltar-se e dar a provar a Romã?

«Que fazer? Multiplicá-la? Não, já sei.»

Her Wah sentiu-se presa ao chão. Onde ainda agora as sandálias descobriam uns pés bem tratados havia raízes. O vento, a leve brisa, dobrava-a pela cintura, e se se pudesse ver saberia que onde pouco antes estava a cara se inseriam agora pétalas coloridas que desafiavam o passante menos avisado a colhê-la, a ceifá-la.

Com cinismo o coleccionador dispôs-se a regá-la.

Achmed foi para casa. Pelo menos tentou ir. Estava em Paris e tinha perdido o comboio. O fenómeno de Roma repetia-se, as pessoas falavam outras línguas que não entendia.

Perdido em Paris. Pelo menos não estava perdido em Kinshasa ou em Islamabad, seria pior. Ali havia elevadores.
Não que a sua raiva em relação a esses monstros tivesse diminuído, mas não estava a ver outra maneira de chegar a casa senão entrar num e esperar que fosse ter a algum lado.

Procurou um elevador.
No meio da praça em que estava havia vários, como se fossem táxis à espera de cliente. Elevadores de cores variadas, uns pintados como se fossem carrosséis de um circo que tivesse ficado esteticamente no século XVIII, com anjinhos barrocos azuis e cavalos encarnados a empinar-se, outros vestidos de fantasia como se fossem participar num estranho Carnaval de elevadores.
Escolheu um pelo cheiro. Um cheiro a flor misteriosa. Desde há alguns minutos que sentia a necessidade daquele cheiro, agora encontrava-o. Resolveu segui-lo e entrou no elevador. Lá dentro um corredor e o perfume apontava-lhe o caminho como uma seta, dirigiu-se ao fundo do corredor e encontrou uma porta pequena, estranhamente não junto ao chão mas a cerca de 50 cm de altura em relação a este. Forçou o corpo a passar por lá encolheu-se todo e do outro lado um sol radioso iluminava uma paisagem de protector de écran de computador, assim prados, céu azul e flores. Estava molhado e gritou de contentamento por sair para o ar livre.

O perfume atraía-o tenazmente, obrigava-o a segui-lo a procurar a sua fonte. No meio do prado, sem hesitação encontrou-a. Uma flor, singela, azul, lembrava-lhe Her Wah.

Não sou eu, estúpido, disse-lhe a flor azul para sua vergonha, é a encarnadinha aqui ao lado, estás constipado?

De facto ao lado da azul descarada uma flor encarnada mostrava as suas pétalas ruborizadas. Era de facto Her Wah.
«Como é que vieste parar aqui?»
O Coleccionador de Momentos, explicou ela. Quer fazer um herbário, quer arrancar-se e pôr-me a secar entre as pétalas de um livro, disse-lhe.
«Mas as pétalas dos livros estão mortas, representam momentos passados.»

E depois há a questão de que tipo de livro se trata. Imagine-se Her Wah enfiada num manual de Direito das Obrigações, a servir de marcador numa comédia, a secar as lágrimas de uma donzela num dramalhão tipo telenovela.
Não, leitor amigo, não vou permitir que isso aconteça, Her Wah vai safar-se desta, prometo-lhe, a si e a Achmed, que por sua vez começa a sentir qualquer coisa pela moça, nem que seja por causa do perfume.

O Coleccionador de Momentos dirigiu-se ao prado para regar as flores que lá prendera, as azuis por maus pensamentos e as encarnadas também, as azuis por causa dos delas, as encarnadas por causa dos seus.
Viu Achmed e estacou.

A suivre

Thursday, January 19, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte X, Sob o Signo do Capricórnio

Ondas de Achmeds afluíam a Paris. Em filas compactas marchavam para os cais do Sena em busca de Nicodemus. Obcecados não paravam nem para comprar doughnuts, ordenadamente seguiam em busca da fonte do conhecimento, paravam nos semáforos, portavam-se bem, sem alegria, sem demonstrações menos solenes mas com o cenho carregado de obstinação crua.

As pessoas paravam para os ver, milhares de homens iguais, tão iguais como uma pessoa pode ser igual a si própria, em formação ordenada, sem parar para tomar café, não é coisa de todos os dias, nem sequer em Paris.

Quando o topo da fila alcançou o Rio Nicodemus viu a massa humana que se aproximava da outra margem.

Um compasso de espera.

A primeira fila esboçou uma tentativa de parar mas empurrada pelas de trás continuou em frente. Nadavam agora esboçando figuras geométricas na água em natação sincronizada, cada fila a sua como constelações criadas para o momento.

Nicodemus viu aquilo e julgou estar a ser vítima de uma ilusão. Como ainda não tinha comido nada nesse dia resolveu ir comprar uma baguette.

Quando Achmed alcançou o barco de Nicodemus este não estava, tinha ido à padaria.

Continuaram assim os Achmeds a desenhar constelações na água até que ele chegasse. E foi preciso aguardar que o barco se encontrasse sob o signo de Capricórnio e todos os Achmeds se encontrassem na água até que Nicodemus fizesse uma entrada monumental.

Surgiu como que do nada sobre a margem do Rio, vindo da padaria.
O seu porte altivo, a boina basca puxada para a esquerda, a baguette debaixo do braço, tudo nele indicava o caminho da sabedoria.

Olhou para o Rio e dominou-o admirando o espectáculo.

“Estado do Rio: Constelado, sob o signo de Capricórnio formam-se estrelas humanas à superfície. A humanidade geométrica.” Pensou isto em voz alta e preparou-se para emitir a mensagem urbi et orbi.

Achmed, em todas as suas pessoas, parara e olhava-o admirativamente.
Esperava a palavra do sábio.

Este transmitiu-a e Achmed compreendeu que o propósito da sua peregrinação fora o de constelar-se e desenhar a imagem do mundo em figuras universalmente acessíveis.

Olhou para a sua forma e saiu do Rio, em filas reordenadas. Parou para reflectir-se na água após o banho purificador e subitamente teve fome.

Uma rapariga passou, um cuco na mão esquerda, uma romã na mão direita.
A Romã abriu-se e a rapariga começou a distribuir os bagos aos Achmeds presentes.
À medida que estes os engoliam unificavam-se. Os Achmeds iam desaparecendo como imagens projectadas em espelhos que se quebram, sobrando cada vez menos até ficar só um.
Reintegrado Achmed agradeceu à rapariga a dádiva da Romã e perguntou-lhe como se chamava. Her Wah, disse ela numa voz que combinava com a profundidade dos olhos escuros e redondos.
«Como posso agradecer-te o que fizeste por mim?»
«Sou eu quem te agradece. Andava perdida e sem saber o que fazer. Quando te vi a sair da água em filas, a estacionar em formação tão perfeita aqui na margem do Rio lembrei-me que tinha de distribuir a Romã. Lembrei-me da razão de ter uma romã na mão e dei-ta. Agora tenho uma pista sobre quem sou, por isso te agradeço.»
«Pelo que vejo demos o eu cada um ao outro, mas esse é o significado das grandes coisas, o devolver-nos a nós próprios. És um anjo?»

Entretanto o Coleccionador de Momentos nada satisfeito com a intervenção da Romã preparava a vingança.

A suivre

Monday, January 16, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte IX, Nicodemus, o Alquimista

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
9º episódio: Um rapaz.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte IX Nicodemus, o alquimista.

Primeiro foi um rumor, uma sugestão de notícia, de mensagem disfarçada de trivial.
Como uma estrutura de betão a secar foi-se no entanto tornando mais consistente até se apresentar como um verdadeiro facto.
Em Paris, num barco, no Sena, um sábio transmitia o conhecimento das alterações de estado, das qualidades, das potencialidades que se revelavam em chapas de nitrato de prata a quem o procurasse com o coração aberto.
Que se chamava Nicodemus.

Foi Achmed entre todos quem primeiro resolveu dirigir-se-lhe.
Partira de comboio até Paris, visitara o Louvre e a Torre Eiffel, ouvira falar de Nicodemus e fizera correr a notícia da sua presença.

Achmed resolveu dirigir-se-lhe.
Pelos quatro cantos do mundo Achmed decidiu consultá-lo.
E tal como haviam feito na dispersão agora peregrinavam para Paris num movimento circular.
Uns por terra, outros por mar e outros tomando emprestadas as asas das cegonhas acorriam a Paris.

Her Wah também ouviu o rumor.
Esperou um telefonema, um e mail, um sms, algo que a convocasse para a peregrinação a Nicodemus em busca do coleccionador de momentos

Foi o cuco. Abriu o bico e projectou uma imagem holográfica de Achmed que lhe sorriu com doçura e lhe disse que procurasse Nicodemus. Este poderia informá-la sobre onde poderia encontrar o coleccionador de momentos. E talvez até informá-la sobre onde se poderia encontrar a si própria.

A suivre

Sunday, January 15, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte VIII

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
8 episódio: Uma rapariga. Se calhar é ela que junta a cor vermelha da paixão às pontas de cigarro. Corresponde-se via net com Achmed. Aparece o fantasma de um cão.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte VIII Her Wah.

Olhou a Romã, o cuco e os lábios carregados de baton. Como te chamas?
Que se chamava Her Wah, não se lembrava muito bem como tinha chegado ali ou quem a trouxera.
Tinha uma vaga ideia de uma viagem de autocarro em que dormira durante quase todo o caminho, mas não muito mais.
Sabia que se chamava Her Wah e que devia beijar os bonequinhos de barro. Também ela ficara surpreendida ao ver que eles ganhavam vida e saíam para a Rua.
O cuco achara-o perdido e tivera pena dele, tinha-o consigo para o aquecer, pois lhe parecia que o bichinho tremia de frio.
A romã representava a plenitude dos frutos, a generosidade da Terra no fim do Verão, e usava-a para lhe recordar a sua condição de fruto da terra também ela.
Achmed julgara ter encontrado o coleccionador de momentos, mas Her Wah parecia-lhe agora apenas mais um instrumento nas mãos deste, como ele próprio.
Her Wah lembrava-se vagamente de ser de Campo de Ourique mas pouco mais. Do coleccionador nunca ouvira falar, não sabia se era ela a musa dos cinzeiros.
Saíram da casinha e encontraram-se face a uma multidão de Achmeds que os olhavam em busca de uma explicação que não tinha para se dar a si próprio.
Pelo menos a produção de Achmeds parara por um momento.
Mas os que havia já eram um batalhão, havia que dar que fazer a tantos eus sob pena de o mundo interior de Achmed ser esmagado por uma onda de egocentrismo que ocasionalmente se formasse.
Achmed resolveu partir a correr mundo em busca do coleccionador de momentos.
Comunicou essa decisão a si usando um megafone para se poder ouvir a si próprio, tal era a multidão de si que o coleccionador gerara.
A decisão foi partilhada por si e todos os Achmeds se muniram de uma mochila, um saco-cama, um cantil e partiram à demanda do coleccionador de momentos.
Tentaram dizer palavras de encorajamento uns aos mesmos mas nessa altura verificaram que já não falavam qualquer língua comum.
Abraçaram-se apenas, com emoção.
Her Wah ficou só e triste. Resolveu bordar uma colcha enquanto o esperava.

Uns foram por mar, outros por terra, outros ainda criaram asas e acompanharam as andorinhas na sua migração para África.

Um destes encontrou uma máscara muito bela na África Central e resolveu levá-la para o seu escritório de Roma, que ficava nas traseiras de um elevador.
Falava com ela muitas vezes e perguntava-lhe pelo coleccionador. A máscara respondia-lhe com frases de entendimento inexpugnável como fortalezas medievais.
«Máscara minha, diz-me tu, sabes quem é o coleccionador?»
«É favor introduzir uma moeda na ranhura indicada na parte 3 p) das instruções.»
«E sabes onde mora?»
«Ao terceiro sinal serão 14 horas e cinquenta minutos»
«Diz-me ao menos se algum dia me poderei encontrar a mim próprio»
«Gostei muito de o servir»

Claro que estas frases enigmáticas são de difícil interpretação.
Com o tempo uma ideia brilhante iluminou-o e resolveu criar um negócio: As pessoas vinham ao seu escritório e pagavam para consultar a máquina. Como as respostas às perguntas eram de difícil entendimento Achmed prontificava-se a auxiliá-las na compreensão destas.
Esse auxílio era prestado com criatividade, de modo que também ele com o tempo se transformou num coleccionador de momentos, os que criava.

Dos que partiram por mar a maioria não voltou, encontrou a sua versão pessoal do Canto IX dos Lusíadas, ou um emprego melhor que o de obstetra em Roma e por lá ficaram, onde calhou, coleccionando novos mundos ao mundo.

Por terra os caminhos eram duros e difíceis.

Uns foram a pé, outros de carro, outros de bicicleta e outros ainda de comboio.

Friday, January 13, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte VII

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
7 episódio: Piero descobre que é procurado sob o nome de Prince Hamad Bin Maktoum e que os cinzeiros são substituíveis, as raparigas que ungem as pontas de cigarro com baton não.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte VII

A. Ligou o televisor e olhou: Reconheceu a imagem do seu pai, já falecido há muitos anos, que dava uma entrevista sobre uma criança desaparecida.
A câmara faz um zoom sobre uma fotografia e aí está ele, criança, sorridente e vestido para a primeira comunhão.
Diz o pai que a criança se chama Achmed, como ele, e que desapareceu pouco depois da fotografia ter sido tirada.

Tirada foi, pensou, de um baú de memórias, já nem me lembrava de ter usado um lacinho, já nem me lembrava de ser assim tão jovem.

O coleccionador de momentos fora cruel. Dispersara-o em futuros divergentes e agora fazia-os convergir de novo.

Telefonou para a estação de televisão e avisou que sabia da criança.
A produção ficou alvoroçada, pediram-lhe que não desligasse e puseram-no em contacto com o pai, ao vivo:

«Pai?»
«Quem é o Senhor?»
«Sou o Achmed, pai.»
«Não pode ser, o meu filho é uma criança e o Senhor é um adulto.»
«Mas sou eu, pai, eu reconheço-o a si, a criança na fotografia sou eu, é a minha imagem no dia da primeira comunhão, lembra-se? O tio Zé bebeu muita cerveja e pegou a discutir com a tia. Ela insistia que tinham de apanhar um táxi e ele que estava óptimo para conduzir e acabaram por ir cada um para seu lado e ainda hoje lá devem estar. E o bolo tinha uma cobertura de bagos de romã e a avó deu-me um relógio que no dia seguinte me roubaram na escola, lembra-se?»
«És mesmo tu, Achmed?»
«Pai!»

Resolveu ir ter com o pai.
Falou com o alter-ego e este, de lágrima no canto do olho, reconheceu que embora o pai na realidade tivesse falecido o que acabara de ver convencera-o a procurá-lo.
Chamaram os bombeiros e tiraram o outro Achmed que estava no alto do poste, explicaram-lhe a situação e foram os três ao encontro do pai.

Este estava ainda no estúdio da televisão.
Chegados lá disseram-lhes que o pai estava no sexto andar e dirigiram-nos para o elevador.
Que não, que iam pelas escadas.
À frente o Achmed em melhor forma física, depois por ordem de capacidade atlética, os outros.
Chegaram ao sexto andar e encontraram o pai. Este abraçou o primeiro a chegar, momento que uma câmara lacrimejante não deixou de fixar.
Mas depois chegou o outro e outro ainda e o pai não cabia em si de contente. Recuperar um filho é uma boa notícia, mas logo três.
O problema é que Achmed não parava de subir as escadas, cada vez chegavam mais ao sexto andar.

O coleccionador de momentos sentira-se tão feliz com o reencontro que o multiplicava.

B. Ligou o televisor e olhou: No princípio era uma névoa distante mas depois toda a sua infância lhe desfilou ante os olhos.
As quedas da bicicleta, as reguadas na escola, o peito da empregada, o bibe azul, tudo o que era importante.

Ouve lá, disse-lhe o alter-ego, a tua infância é a mesma que a minha? Estás recordado das quedas da bicicleta, das reguadas na escola, do peito da empregada, do bibe azul?

Que sim, que estava, e do comboio eléctrico que o tio Zé me deu. - Que sim, também me lembro.

E lembras-te da carraspana que ele apanhou na minha primeira comunhão? – Olha se não me lembro…

A secretária em que o alter-ego estava sentado transformou-se num posto de comando de helicóptero e saíram os dois em busca de mais eus, a começar pelo que estava pendurado no poste.

Recolhido este resolveram ir verificar se havia mais.
Saíram do helicóptero e desceram à cidade.
«As ruas estão pejadas de mim!» disse um deles.
E de facto todas as pessoas que viam eram afinal ele próprio.
Parecia todo ele vir do mesmo local, uma pequena porta numa casa de dos andares no fim da rua.
A porta era tão pequena e estreita que tinham de sair curvados.

Achmed esperou um pequeno intervalo e aproveitou «com licença» para entrar.
Lá dentro a rapariga da romã e do cuco pegava em pequenas estátuas de barro, beijava-as, deixando-lhe uma marca de baton, e dava-lhes vida, formava novos Achmeds.

C. Ligou o televisor e olhou: Nada de especial.
«Tens de deixar passar os anúncios».
Num canal de cabo que não reconheceu um locutor de voz grave explicava qualquer coisa naquele tom triste dos comentadores desportivos quando a selecção está a perder.
Mas era a imagem que o fascinava:
A sua própria imagem dava corpo a um sarcófago colorido em tons turquesa e laranja.
Aberto o sarcófago, levantada a tampa, outro igual surgia por dentro, e mais uma vez e outra e outra.
O estranho é que os sarcófagos não iam ficando mais pequenos, eram todos do mesmo tamanho.
Nessa altura o locutor dizia qualquer coisa no tom de que a selecção acaba de marcar um golo, empatou o jogo e atira-se para a frente, mas Achmed não percebia nada, embora a língua não lhe fosse estranha não conseguia perceber o que era dito.
E continuavam a aparecer sarcófagos com a sua imagem.

A suivre…

 

As Aventuras do Príncipe Achmed

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
6º episódio: Piero sobe as escadas até ao sétimo andar de onde tem vista para o Rio. Revela-se um coleccionador de momentos.


O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte VI

Tudo tem uma explicação.
Caí nas mãos de um coleccionador de momentos.

Como sabes – disse-me o alter-ego sentado atrás da secretária – os momentos nascem e morrem, nascem para morrer e dar lugar a outros momentos.
Os momentos são filhos de outros momentos e devoram os pais ao nascer.
Agora imagina que um coleccionador de momentos conseguia arranjar maneira de não os deixar morrer, de fazer com que os momentos se prolongassem até ao infinito, ficassem vivos como zombies para além do seu tempo de morrer.
Tu que sou eu em diversos tempos passámos a ser contemporâneos, como aquele desgraçado lá fora pendurado no poste.
Como se todas as fotografias tipo passe que circulam aí nos nossos documentos, no Bilhete de Identidade, na Carta de Condução, no cartão de sócio do Clube, ganhassem autonomia, ganhassem vida.
Como se alguém em vez de coleccionar pontas de cigarro beijadas pela mulher amada coleccionasse um cinzeiro diferente por cada vez que ela faz o funeral do que resta de um SG Light.

Estás a ver? Há um eu do Bilhete de Identidade que mora em Algés, ou em Roma, e há outro que conduz automóveis entre Algés e Roma ou entre outros destinos quaisquer. E já viste que posso ser do Benfica e do Sporting com a mesma fé, na mesma altura?

Multiplico-me mas não cresço, sou sempre o mesmo. Como se a romã explodisse e os seus bagos começassem a explicar cada um a sua versão do acontecimento.
Ao ganhar as diversas identidades perdi a identidade e tornei-me um títere nas mãos do coleccionador de momentos.

- Bom, já somos três – disse-me eu. O eu da secretária, o eu raptado por um elevador num parque de estacionamento e o eu que voa como as pombas no alto de um poste que já foi suporte de elevador.

- E se ligares a televisão vais ter uma surpresa – respondi-me.

A suivre

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte V

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
Resumo do 5º episódio:
Piero volta para casa e abraça-se com os seus pensamentos.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte V
«Vês-me ali na ponta daquele poste em equilíbrio precário?» Olho pela janela e lá estou, cheio de vertigens.

Vendo-me naquela posição começo a crer que há qualidades em mim que desconheço e que sou de algum modo responsável pelas tribulações que vejo atingir-me.

Talvez um lado lunar, uma personalidade malévola que procura outros eus de modo a auto infligir-me tormentos e quiçá mortes.

Temo que esta conversa vá acabar mal para mim, quem quer que eu seja.

A suivre…

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte IV

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
Resumo do 4º episódio:
Piero safa-se do elevador e ainda ajuda o parto que estava à sua espera.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte IV

Acompanhou a rapariga do tailleur cinzento até junto de uma passadeira rolante. A passadeira está no seu estado quieto, não rolante.
Na coluna que marca o seu início há uma ranhura para introduzir moedas onde a rapariga lhe sugere com um olhar que coloque uma moeda.

Teve de lhe mimar que não tinha. Trocara de roupa e não tinha dinheiro consigo. A rapariga entendeu os seus gestos como se já estivesse à espera que não tivesse dinheiro e tirou ela uma moeda de dentro da malinha de mão, introduziu-a na ranhura e pôs a passadeira a funcionar.

A passadeira a certa altura transformou-se num curso de água suave que começaram a navegar num barco que estava no fim para o efeito.

Seguiram entre as margens até encontrarem uma queda de água. Nessa altura deixaram-se deslizar por ela e foram ter a uma sala que Piero já conhecia.

Era a sala em que pela primeira vez encontrara o seu outro eu. A rapariga incendiou-se e saiu como uma pequena coluna de fumo tragada pelo exaustor.

O eu sentava-se agora em frente a uma secretária por debaixo da máscara africana.

Falou-lhe numa voz suave e numa língua desconhecida mas que desta vez entendeu perfeitamente.

A suivre

Thursday, January 12, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte III

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
Resumo do 3º episódio:
Piero recorda o seu próprio nascimento.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte III

Uma rapariga passa, nua, na mão esquerda um cuco, na mão direita uma romã madura.

Nascer é uma coisa complicada, quanto mais renascer.
Voltar a passar molhado e frio do mundo seguro do ventre da mãe para um lugar perigoso em que é preciso ter cuidado ao atravessar as ruas para não se ser atropelado.
Saber o que isso custa e mesmo assim tomar o elevador à espera de que as coisas melhorem é uma obra que requer coragem.

Felizmente os da segurança não chamaram a polícia.
Deram-lhe umas roupas e umas palmadas nas costas em jeito de despedida.

Saiu dali assim que pode.
Resolveu ir para casa para mudar de roupa e verificar se por acaso não estaria a dormir na sua cama e tudo aquilo não passava de um sonho.

Procurou Roma inteira mas não encontrou a sua casa.
Perguntou a várias pessoas onde estava a sua rua mas elas eram por coincidência todas estrangeiras e não se conseguia fazer entender. Ninguém falava qualquer língua sua conhecida.

Convencido que a culpa do que lhe estava a acontecer era do elevador foi procurar o Hospital.
Não o encontrou.
No seu lugar estava um parque de estacionamento.

Ficou com a impressão de estar com o destino trocado.

Entrou no parque de estacionamento e viu que tinha elevadores.

«Nesta não caio eu!» Pensou.
Mas a atracção do abismo fascinava-o.
Saberia domar o medo?

Além de que o elevador naquele caso era a descer. Descia do piso térreo para o parque -1 e depois para o parque -2.
Que mal podia acontecer-lhe num elevador que afinal era um deselevador?

Na realidade era uma caixa fechada na mesma mas que não subia depositando-o no céu ou numa praça aberta, em princípio descia, embora a sua experiência recente lhe dissesse que devia desconfiar desse género de inferência.
Carregou no botão de chamada e mal a porta se abriu hesitou.
Tinha medo.
Uma impressão dolorosa no ventre, um frio esquisito.

Deixou passar aquele elevador, respirou fundo e carregou outra vez no botão.
O elevador apenas tinha fechado as portas mas a sua boca enorme aguardava-o logo ali para o devorar mal tocou no botão.
Deixou-se tragar. Com a respiração entrecortada procurou um botão para carregar. Havia dois. Tinham desenhos de coisas parecidas com letras de um alfabeto que não lhe era completamente estranho mas que era de qualquer modo incompreensível.

Carregou no botão de baixo.
O elevador fechou as portas lentamente sobre si.
Sentiu-se descer.
Tremia e parara de respirar. Fechou os olhos.

Desceu e desceu, parecia nunca mais parar. Será que é o medo que me faz prolongar o tempo da viagem, o meu coração apressado que me multiplica os segundos e os faz minutos?

Decidiu entrar em pânico e nessa altura as portas do elevador abriram-se.
Deixou o pânico sair primeiro e depois aventurou-se.

Era um escritório enorme.
Filas e filas de funcionários espreitavam para dentro dos monitores dos respectivos computadores.
Alguns falavam pelo telefone.
Lâmpadas de tecto compridas zelavam sobre as actividades que decorriam junto ao solo.

Uma rapariga com um tailleur cinzento, meias pretas, um colar de pérolas discreto, um cuco na mão esquerda e uma romã na mão direita sorriu-lhe de mansinho cumprimentando-o.

A suivre...

Wednesday, January 11, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte II

PRÍNCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ
2º episódio: Piero procura na mente a razão por que sofre de claustrofobia.

O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro, http://www.risocordetejo.blogspot.com/

As Aventuras do Príncipe Achmed
(versão não autorizada)

Parte II

A. Luz!
É a primeira coisa que vejo, é a primeira vez que a vejo mas sei o que é, sempre soube.
Vozes!
Não mais o bater regular que me acompanhou durante tanto tempo. O hino ao bombear do sangue é agora substituído pelo caos das vozes que não compreendo.
Frio!
Tenho medo. Começo a gritar e o som do meu choro abafa o caos do ruído das vozes.
Seco!
Um mundo novo aguarda-me e não sei se gosto dele.

B. Continuação da história narrada lá atrás:

Ao ser depositado na Praça de S. Pedro tomo consciência de estar a fazer parte de um milagre.
Turistas correm furiosamente na minha direcção de máquinas fotográficas em riste.
Rapidamente os serviços de segurança me acolhem e cobrem o corpo, visto que estou nu e molhado (molhado ainda vá lá, mas parece que nu no Vaticano é proibido pelo menos desde o século XVII).

Os restos do elevador incendiaram-se e deles só resta uma leve cinza que o vento suave em breve dispersa.
Não tenho assim prova de ter sido outra coisa para além de um ser nu e molhado, não tenho prova de ter vindo de algum lado, de pertencer a algum lado.
Por outro lado não tenho meios de regressar ao lugar de onde vim a não ser a pé, posto que o elevador desapareceu.

Tento falar com os seguranças mas eles olham em frente como se fossem surdos e permanecem indiferentes aos meus gestos.
Levam-me a um responsável.
Os galões de responsável espelham-se-lhe na expressão da face.

Começa a falar comigo numa língua vagamente familiar mas que não entendo.
Oiço que tenta a abordagem noutras línguas. Todas me parecem familiares, mas não as reconheço.

Além da responsabilidade nota-se-lhe agora no olhar a irritação.

Se calhar vão chamar a polícia.

A suivre...

C. Continuação daquela parte em que Piero encontra o seu outro eu nas traseiras do elevador:

Foi o seu outro eu que quebrou o gelo:

«Despe-te!» ordenou-lhe, seguido de um «Vai tomar banho!» assim que se despiu.

É por vezes difícil obedecer à nossa própria voz, mas aquele era um caso em que a autoridade que o seu alter-ego emanava tornava as coisas fáceis.
Curioso, pensou, o eu que me conheço sou indeciso e pouco autoritário mas este eu dou ordens como se não fizesse outra coisa na vida e não espero de facto nada senão que me obedeçam.

Foi tomar banho, um chuveiro morno. No fim pediu uma toalha.
- Que não havia. Tinha de ficar molhado, a ideia era essa.
Mandou-o entrar de volta para o elevador.
Apesar de a ordem lhe desagradar não viu maneira de se impedir de obedecer a si próprio.

Uma vez dentro do elevador o seu outro eu que ficara na sala disse à máscara africana que aparelhasse os cavalos de fogo ao elevador e o conduzisse até à Praça de S. Pedro.

Mandou-o também esquecer o que se passara até aí.

Tenho planos para mim para o futuro disse-se a si próprio o alter-ego. Vou escrever uma floresta de enganos.

A suivre...

Tuesday, January 10, 2006

 

Mais um drama em Alcácer Kibir

Se vires o D. Sebastião dá-lhe um beijinho da minha parte e outro ao nevoeiro.

Aliás os amigos já sabiam quando o D. Sebastião estava para chegar por causa da humidade. E a mãe quando ele chegava a casa vindo da escola ralhava-lhe – limpa os pés e enxuga o nevoeiro…

Não se via nada à volta dele. Diz-se que uma dama da corte entrou no nevoeiro para lhe mudar a fralda, se perdeu e foi encontrada na Cova da Iria rodeada de pastorinhos muitos anos depois a assistir às aparições.

Desde então nunca mais se trocaram as fraldas em dias de nevoeiro porque os três pastorinhos e a tal dama da corte ficaram famosos e o mundo só falava deles esquecendo para sempre o Sebastião que, por força do abandono se retirou para terras distantes através do nevoeiro jurando nunca mais voltar por se sentir rejeitado. Conhece bem o caminho de volta mas não quer voltar nunca mais, dando assim uma lição de verticalidade ao país o qual até hoje ainda não compreendeu.

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte I

PRINCIPE HAMAD OU EXTRACTO DE ROMÃ

1º episódio.
Piero é obstetra, mora em Roma, sofre de claustrofobia e entra num elevador que não funciona.
O relato completo pode ser encontrado no Blog da autora, Risoleta Pinto Pedro,
  • http://www.risocordetejo.blogspot.com/
    As Aventuras do Príncipe Achmed
    (versão não autorizada)

    Parte I

    A. Na parte de trás do elevador, a que devia ser cega, adivinha-se uma porta em carvalho grosso que quando entrara juraria que não estava lá.

    Na porta tinha escrito em palavras sussurradas: Entra-me.

    Pesada como era custou-lhe movê-la mas entreabriu-a e passou pela fresta assim formada.

    Do outro lado um outro ele olhava para si com um ar admirado.

    Vestia-se de outras cores. Era mais alto e conservava mais cabelo. De resto pouco os diferenciava.
    Talvez um ar irónico na cara do seu outro eu, como se esperasse tudo na vida, até com dar consigo a entrar por uma porta de carvalho apenas entreaberta.

    É difícil saber o que fazer numa situação destas.
    Cumprimentar?
    Como estou?

    Como vim aqui parar? – Qual de nós?

    O mundo deste lado do elevador não era um piso térreo como pode ver pela janela atrás do outro eu, via-se telhados até perder de vista, céu azul sem fronteiras.
    Uma sala forrada a móveis de mogno.
    Não era o gabinete de um obstetra, pelo menos num hospital.

    Do lado esquerdo uma máscara africana, grande, em madeira escura parecia ouvir o bater rápido do seu coração enquanto o banhava com um olhar malévolo.

    Olhava para esses lados à espera de inspiração para dizer alguma coisa.

    B. Talvez antes assim:

    Uma tontura avassala-o. Põe as mãos na parede do elevador para se equilibrar e repara que está quente.
    Mantém as mãos enquanto a parede aquece até se tornar insuportável.

    O Suor tapa-lhe os olhos. Ajoelha-se no chão do elevador e sente que as paredes se apertam à sua volta como num conto do Edgar Alan Poe.

    De súbito uma corrente de ar, um bater de asas.
    Um anjo? Pergunta-se.

    A medo abre os olhos e não, não era um anjo, apenas uma pomba a olhar para si com um ar espantado.
    À sua volta ar.
    O elevador subira ao topo do edifício do hospital, furara a cobertura e deixara-o sozinho numa plataforma como se fosse um globo no topo de um poste.
    Qualquer rabanada de vento ameaçava-o de o fazer cair.
    Agachou-se ainda mais no chão do que fora o elevador e viu que este começava a encolher.

    Ou ainda:

    C. Só aparentemente o elevador não se movia.

    Começou a detectar algum movimento quando se apercebeu que estava a enjoar, o que o deixou cheio de satisfação.

    O elevador movia-se, sim, mas não tinha qualquer noção de para onde.

    Os elevadores são um bocado estreitos de perspectivas, em geral. Para cima, para baixo, primeiro andar, confecções de senhora.
    Desta vez tinha dado com um criativo. Felizmente não passava música senão sabe-se lá o que sairia dali (Iron Maiden? Qualquer coisa longe do conceito de música de elevador).

    À claustrofobia juntava-se agora o medo do destino.

    Será que me vai deixar no quarto andar, no Serviço de Obstetrícia? No sexto andar, aquele andar onde se passam aquelas coisas que eu não tenho autorização para ver? Perguntava-se.

    Com grande estrondo e pompa de trombetas a porta do elevador abriu-se.

    Estava no meio da Praça grande do Vaticano.»

    A suivre...

  •  

    Um momento de desânimo

    Desatento ao trânsito um momento atravessava a rua quando foi colhido por uma máquina fotográfica desenfreada em correria louca.

    Ficou guardado para sempre na memória dos que assistiram ao acidente.

    Alguns destes ficaram de tal maneira chocados que não conseguiram sair daquele momento e ainda lá estão, como que petrificados, postes insólitos cravados na paisagem.

    Apenas uma menina de tranças os vai ver e todos os dias os rega na esperança de que floresçam num tempo novo.

    Há também um cão que passa pelo local mas segue sem se deter porque aquele momento não era o seu momento. Simplesmente não os vê.

    Monday, January 02, 2006

     

    E o ano novo entrou pela porta principal num carro de fogo puxado por quatro cavalos alados

    Piroclastos de várias cores preenchem a noite tornando-a menos assustadora e juntam-se às bolhas das garrafas de vinho espumoso que sobem ao céu celebrando o novo Sol que há de nascer daí a umas horas.

    Por detrás de cada riso um perfil de medo. Grita-se e salta-se o medo numa deglutição de passas apressada comandada por uma caixa que grita ordens numa linguagem só acessível aos adultos.

    Porque as crianças sabem que a sua hora ainda não chegou.

    Sunday, January 01, 2006

     

    Os dias Post Pai Natal

    Dias do reerguer da humanidade.

    Notícias do Tibete dão o Pai Natal como perdido com uma over dose de bichos-da-seda

    As renas, a um tempo órfãs e viúvas, torcem-se de dor. O trenó parte, solitário.

    O trenó foi encontrado à beira rio, rodeado de folhas e cavalos-marinhos que dançavam em seu redor festejando o amanhecer de um novo dia, repleto daquele mistério próprio dos momentos há muito esperados.

    Os bichos-da-seda fizeram luto… imagina! Não conseguem viver sem o mal necessário feliz ano novo (ia-me esquecendo).

     

    Iogurte com sabor a morango, Parte XIV, A Despedida

    Com o fim da perigosidade dos caracóis a guerra acabava e a resistência perdia o sentido. Perdendo o sentido perdia o poder.
    E a rapariga tinha-se habituado ao poder, respirava-o e comia-o, dormia com ele e não o iria largar sem luta.

    Deixei o Zé ir para casa.
    Dois dias depois fui ao funeral.

    Não havia maneira de adiar as coisas, era eu e ela.
    Primeiro ela mandou assaltar-me a casa.
    Claro que depois do aniversário nem eu nem o filho lá estávamos.
    Matou-me uma data de amigos mas a não me atingiu a mim nem ao menino, estávamos escondidos nos esgotos. Como nos velhos tempos.

    Convidou-me para um encontro a sós no parque de estacionamento do supermercado onde nos encontráramos pela primeira vez.
    Ir sozinho e levar uma faca.
    Que sim.

    Ao Pôr-do-sol, nós os dois, frente e frente.

    - «Vais abusar de mim?» – perguntei-lhe.
    - «Vou com certeza.»
    - «O que te levou a modificares-te tanto?
    - «Eu não me modifiquei, fui sempre assim, tu é que me vias de outra maneira.»
    - «Não há mais nada a dizer, pois não?» - e levei a mão à testa.

    Nessa altura a cabeça dela explodiu num jorro de sangue.
    Depois ouvi um disparo vindo de longe.

    Atirei-me para o chão mas não valia a pena, não havia mais atiradores emboscados para além do que eu trouxera.

    Honra lhe seja feita, tinha escolhido uma maneira nobre de morrer.

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