Friday, April 28, 2006

 

A Ponte da Glória V, O Nome da Glória

Torre do Salto?
Torre da Glória!

Este último nome parecia mais justo para os heróis desistentes que se atiravam dela.
Nem que fosse pelo breve momento de um voo era a Glória que alcançavam, mesmo no momento mais dorido da vida, era a Glória que lhes era reconhecida, era para Glória do desistente que a torre era construída.

Torre da Glória seria, pois.

E que melhor símbolo que o coroar de uma chama. Uma chama que evocasse a eternidade da Glória dos que procuravam a morte.

Thursday, April 27, 2006

 

A Ponte da Glória IV, Uma Questão de Pudor

A confusão era tão grande que foi decidido construir uma torre especialmente para o efeito no parque da cidade.
A Torre suicidária.

Rectangular, atirada para o céu para que os saltadores (eram conhecidos agora assim) pudessem praticar a sua arte como se vindos do céu para a terra.
Para que a imagem bela e pura do saltador, braços abertos, peito ao vento, iniciando o mergulho suave como ave a iniciar o voo, recortada contra o azul do céu emocionasse os espectadores.
Para que esse momento fugaz e irrepetível pudesse ficar guardado na mente dos que a ele assistissem.
Na mente, porque no solo não. Este fora substituído por uma enorme bacia em alumínio com uma rede fina que permitia colher os corpos sem desnecessárias exposições a quedas intempestivas.
Um sistema de rega permitia a auto lavagem dos restos para uma canalização central.
Um murete delimitava a bacia, com nichos para guardar ramos de flores que as famílias enlutadas depositariam.
E não só as famílias, os representantes do clube da freguesia enlutada pela morte dos mais bravos saltadores, aqueles que empolgavam as multidões, os da nota 5 com comentários favoráveis da imprensa poderia pôr flores com notas pungentes.
“Adeus amigo, saltaste bem.” Ou coisa que o valha.

Em volta, a toda a volta da torre elevar-se-iam bancadas. Modernas, confortáveis.

Duas questões políticas se levantaram desde logo em relação a este projecto.

Como chamar-lhe?
Que símbolo colocar-lhe no topo?

Torre do suicídio não podia ser por uma questão de pudor.

 

A Ponte da Glória III "O Salto"

A Câmara Municipal decidiu criar um fundo de auxílio às viúvas e órfãos dos trabalhadores atingidos pela queda de suicidas.
Para isso recorreu à venda dos automóveis deixados pelos suicidas no parque de estacionamento da plataforma da ponte.
Mas a medida, além de ser de duvidosa legalidade, pouco efeito prático tinha.
Alguém se vai suicidar de Porsche?
O pessoal levava chavecos velhos e às vezes chegava mesmo a alugar um carro para a ocasião.

Uma mente um pouco mais séria começou a planear as coisas de um modo mais científico.
Foi um jornalista desportivo.
Porque não atribuir classificações oficiais aos saltos dos suicidas, ordená-los por freguesias e organizar apostas sobre as pontuações obtidas pelas freguesias. Por exemplo apostar que Santo Condestável esta semana ganharia a Arroios por 3 a 1.
Com parte do dinheiro assim obtido poderia criar-se um fundo de pensões para as viúvas e órfãos dos trabalhadores da limpeza da base do pilar atingidos em serviço.

Se não se conseguisse encontrar a viúva sempre se faria uma ceia de Natal para os sobreviventes.

O esquema foi aperfeiçoado por técnicos de apostas mútuas desportivas.

Um novo jornal desportivo foi criado.

“O Salto”

 

A Ponte da Glória II a limpeza da base

Pode calcular-se os problemas que isto causava no trânsito. Ainda por cima numa ponte, no elo de ligação entre o norte e o sul de uma fonte de vida como é um curso de água.

E depois a base do pilar.
Tinha de ser limpo.
Várias vezes ao dia.

Para isso foram criadas brigadas especiais de limpeza constituídas por imigrantes que nos seus fatinhos de oleado cor-de-laranja limpavam e desinfectavam o local.
Uma vez por outra um suicida mais apressado atirava-se sem cuidar de ver se não estaria algum trabalhador da limpeza na parte de baixo e criava mais uma viúva de um mártir da busca de uma vida melhor.
Tentou criar-se um sistema de sinalização, um semáforo de que a luz encarnada indicava a proibição de cometer suicídio naquele momento enquanto os trabalhadores da limpeza não evacuassem a base do pilar.

Como a perspectiva da multa não dissuadia os suicidas foi decidido aplicar pesadas penas de prisão aos infractores mas essa medida tão pouco teve sucesso.

 

A Ponte da Glória

Claro que assim que a nova ponte ficou pronta os problemas de trânsito passaram de um lado para outro sem ter causado grande alívio.

Eu explico.

As autoridades tinham construído uma espécie de esplanada junto do primeiro pilar.
Na esplanada havia o que costuma haver nas esplanadas: Cafés, geladarias, famílias em traje de passeio, desportistas em traje de desporto, carrinhos de hot dogs, namorados de olhar esperançoso, velhotes a jogar dominó e a admirar os rabos das raparigas com um olhar desesperançoso. Pessoas no seu melhor.
Aos Domingos então era um festival, pessoas por todo o lado.
Os habitués chateados pela presença dos outros, o cheiro a algodão doce as gajas de casaco de peles a suar em bica do efeito do vinho do almoço sob o peso do Sol.

O Sol por sua vez não se chateava. Os Homens nascem e morrem, os sóis também mas muito mais devagar.

O primeiro foi notícia curta de jornal. Que um homem de 26 anos se tinha atirado da plataforma do primeiro pilar, dado um salto elegante e aterrado de cabeça cem metros abaixo, espalhando sangue e pedaços de si na base do pilar.

No Domingo seguinte mais dois. A partir daí os problemas de trânsito no acesso à ponte começaram a ser terríveis.

As pessoas afluíam aos magotes, o homem do carrinho dos hot dogs foi obrigado a comprar um distribuidor de senhas e a contratar um ajudante porque a confusão na fila era tal que às vezes as pessoas se pegavam, retirando solenidade ao local.

Começou a atribuir-se entre os mirones pontuações à elegância do salto dos suicidas.
Claro que nem todos conseguiam fazer um duplo mortal encorpado, às vezes timidavam uma perna primeiro por cima da vedação, hesitavam, acabavam por se atirar para uma morte inglória de baixa pontuação. E havia mesmo os que desistiam sob os apupos da multidão.

Normalmente eram homens. O espectáculo da morte das mulheres não era muito apreciado, não se sabe porquê.

Monday, April 03, 2006

 

O Perfume do Anjo

À tua porta, mas a porta já não é tua.
O teu cheiro desistiu de a perfumar, a soleira já não enquadra o teu sorriso de anjo.
Lá dentro só saudades envoltas em pó.

A tua cadeira.
Mas já a cor das tuas ancas não a arredonda.
Só a saudade se senta nela agora.

E a janela?
Nunca tinha reparado que era tão vazia e que só tu lhe davas luz.

Só resta esperar pelo pôr-do-sol.

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