Natureza Morta

Lá fora o tempo crescia.
Os que tinham sido crianças a ver uma pista de auto-estrada com um mini às voltas, um acidente com luzinhas, uma área de serviço e uma família foram ficando adolescentes.
Já não os seduzia a pista.
Na auto-estrada nunca chovia.
Não que isso interessasse uma vez que as flores nunca secavam, que os sobreiros da paisagem se mantinham em verde seco e as bermas não se pintavam daquelas cores que a água traz do céu para a terra gota a gota.
Nem os insectos cuspiam no pára-brisas do mini em voos suicidas.

Embalada pelo suave balanço do mini na auto-estrada acabou por adormecer.
Logo de seguida acordou. Da copa de uma árvore que estranhamente seguia ao lado do carro, à mesma velocidade, a cara de uma mulher olhava para si com um ar intrigado.
Olharam-se nos olhos por um momento e depois ambas ao mesmo tempo desviaram os olhares. Primeiro a do carro e depois a da árvore voltaram a olhar-se, como que para terem a certeza de que eram mesmo olhares o que viam e não sonhos.
Foi quando o marido lhe perguntou qualquer coisa e acordou.

Sentada no carro em silêncio pensava no significado das palavras escritas no espelho: “Deseja guardar as alterações a documento 1?”
Haveria na vida uma narrativa sobressalente?

Quando nessa noite pararam para dormir, já noutro hotel, noutro sítio que parecia o mesmo, como o mesmo parecia o hotel, se calhar por ser da mesma cadeia de hotéis, procurou no espelho uma resposta mágica que lhe desse algum descanso.
Nada.
Uma casa de banho de hotel, com os seus sabonetinhos minúsculos, uma sanita a autoproclamar-se limpa numa fita de papel, umas toalhas imaculadamente brancas.
Sem sinais de resposta.

Foi só na manhã seguinte, depois de tomar banho. No espelho o vapor formava uma frase, umas poucas palavras, escritas de trás para a frente em letras invertidas.

Leu depressa, antes que o marido entrasse, e apagou-as.