Sunday, June 25, 2006

 

A Torre da Glória XIV, A Espera

A faixa amarela.

Ficou alvoroçado. Não lhe passava pela cabeça. Então tinha estado a fala com um mártir, um líder. O cego das pedrinhas e da bolsa era um recrutador do gang dos amarelos.

Teve medo, o seu primeiro impulso foi o de procurar o cego para lhe devolver o saco, pedir-lhe desculpa e sujeitar-se às consequências.
Depois deste momento de pânico cedeu às exigências da razão: Manter um perfil baixo, se possível desaparecer por uns tempos, deixar as coisas esquecer e enterrar num buraco qualquer o saco com o bilhete de identidade, a sandes de fiambre e principalmente a faixa.

«Bom, já que cheguei aqui o melhor é comer a sandes de fiambre e depois enterrar o resto.»

Enterrou o saco junto de um campo de oferendas onde se jogava à bola e por isso não se acharia estranho que aparecesse um buraco recém escavado no chão. As pessoas pensariam que se tratava do enterro ritual de uma galinha para dar sorte à equipa da casa e azar ao árbitro e à equipa de fora.

Foi para casa. Escondeu-se durante uns dias sem aparecer aos amigos. Ao fim de uma semana, farto de ouvir concursos na televisão, berros do pai, lamúrias da mãe e às vezes tudo junto, resolveu ir ter com os amigos.
Não estavam no sítio do costume.
Procurou-os.
Não estavam. Não os encontrava em lado nenhum. «Estranho, o que é que se passou?»

Um pensamento frio escorreu-lhe pela espinha abaixo: «O saco, tenho de ir ver o saco.»

Ainda se via bem o sítio onde a terra fora revolvida, era como que um passo na direcção do centro da Terra mas que tinha ficado logo ali e desistido. Abriu o buraco com frenesi para achar tudo calmo lá dentro, o saco repousava delicadamente embrulhado num plástico daqueles de supermercado, o bilhete de identidade e a faixa amarela estavam sossegados, ninguém lhes mexera.

Respirou de alívio mas apenas por um momento. E se alguém tivesse ido lá, visto de que tratava, tirado as suas conclusões, guardado estas para melhor ocasião e reposto as coisas no mesmo sítio?

Guardou o saco no buraco e fechou-o. Resolveu pôr um sinal na terra para saber se alguém lá fosse.
Desistiu da ideia.
Quem fosse ao buraco e o abrisse dar-se-ia com certeza ao cuidado de repor a terra exactamente como estava antes.

Na realidade estava a preocupar-se demais.
Ninguém tinha ido à sua procura.
Não sabiam ode morava.
Nem sequer sabiam o seu nome…

Voltou para casa.
Nada de novo.

No dia seguinte resolveu partir à procura dos amigos. Não encontrou. Tentou falar com a mãe de um deles mas foi corrido à vassourada.

Ainda bem que estava seguro de não ter sido identificado.
Passou mais um dia e um novo arrepio: Porque é que não dava com os amigos? Será que o saco está no mesmo sítio?

Passou pelo campo onde estava enterrado o saco. Passou ao largo primeiro, como quem não quer a coisa, como se passasse ali por acaso (o que era um perfeito disparate, uma vez que não estava vestido para a ocasião, aquilo era um campo da bola, só era frequentado por desportistas e por drogados que iam ali comprar heroína e ele obviamente não era nem uma coisa nem outra).
Passou duas vezes.
Não se conteve, foi ver o saco.
Estava no mesmo sítio.

Uff! Tudo bem. Isto é paranóia, é de estar muito tempo fechado em casa a ver concursos na televisão.

No caminho para casa resolveu procurar os amigos outra vez.
Não estavam.
Não os encontrava.
E o saco? Tinha a certeza de que estava tudo no mesmo sítio? O plástico a embrulhá-lo, o bilhete de identidade e a faixa amarela?
Estava, tinha acabado de ver, que raio de mania.
Mas o pessoal, o que era feito dele?
Se calhar tinham ido fazer qualquer coisa, fazer no sentido de apropriar, humilhar, ou estragar, não no sentido de construir, obviamente.

Era isso, tinham descoberto um brinquedo novo, uma casa abandonada que era preciso roubar ou coisa assim.

Mas há mais de uma semana?

Resolveu passar pelo jardim onde tinha encontrado o cego.
Se passasse longe ele não lhe topava o cheiro. Ainda se lembrou de ir tomar banho antes de passar pelo jardim mas riu-se a tempo do seu próprio excesso de zelo, não era caso para tanto.

O cego não estava, claro.
Mas as pedras estavam em cima do banco, a olhar para si com um ar perscrutador.
Como se tivessem olhinhos que transmitiam a sua posição ao cego. Esse pensamento deu-lhe uma sensação ácida nos intestinos.

Foi para casa.
Voltou no dia seguinte ao saco. Já parecia uma via sacra, ir procurar os amigos em vão, preocupar-se sem razão e ir ver que o saco estava no mesmo sítio e ninguém lhe tinha mexido.

Estava.
No mesmo sítio, na mesma posição, com a mesma folhinha de hera em cima (não tinha resistido a pô-lo da última vez), a faixa amarela e um bilhete de identidade.

Mas não era o do cego, era o seu.

Friday, June 23, 2006

 

A Ponte da Glória XIII, O Festival da Juventude

Não haviam os poderes morais de ficar calados perante o massacre juvenil, a forma bárbara e selvagem como a juventude saltava de locais não autorizados. Não podiam.

Não podiam as autoridades ficar indiferentes ao desafio nem os jovens, provado agora o gosto da desobediência e da revolta ficar em jejum.
Construíra-se a Torre para que se saltasse nela. Pois que nela se saltasse e não fora, em sítios não autorizados, sem condições de higiene, sem a grandeza que a morte sublima.

E as cores.
Os jovens matavam-se agora por cores em bandos amarelos, encarnados, verdes, garridos, em estética de video clip espalhando grafitti nos chãos de ruas, desenhando com o seu sangue e as posições grotescas dos corpos obscenidades que os poderes morais não podiam tolerar.

Estaria toda a juventude corrupta e falha de princípios?
Não haveria na juventude ainda um desejo branco de ausência de garridice, um propósito de abstinência que a conduzisse à morte, sim, mas a uma morte imaculada, com princípio, meio e fim?
Exacto, principalmente com fim, mas um fim em branco, um fim que apagasse as jovens vidas como a tela de um cinema quando o filme acaba e os créditos e tudo se acaba e as luzes se acendem fazendo morrer a magia, fazendo que a morte se tornasse de facto um eterno descanso e não uma maneira de dizer.

Teria de se encontrar uma resposta em branco, descolorida, vazia, que permitisse à juventude enchê-la de propósitos de renúncia, de abstinência, contrariar a sensualidade da morte dos gangs, transformar em estátuas de mármore os corpos belos que saltam.

Um festival de branco.

A obra ao negro evocada em branco.

A pureza como fim, a ascese.

Concordaram as autoridades municipais. Contrataram empresas de publicidade como se se tratasse de uma campanha eleitoral.

O festival da Juventude.
Que se engalanassem as avenidas de flâmulas apagadas em branco, que se agitassem bandeiras brancas de pureza.
Grupos de jovens vestidos de branco acorreram do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste.
Desciam dos autocarros, subiam dos subterrâneos do Metro, passavam por debaixo dos arcos enfeitados com lírios brancos, os rapazes com as suas fardas brancas, excitados e ao mesmo tempo receosos, pois só se morre uma vez, viver equivale a muitas mortes.
Cada momento que passa morre, vai-se embora e não torna.

As raparigas vestidas de túnicas aguardavam a passagem dos rapazes, decotes entreabertos obrigando a adivinhar peitos como cúpulas apontadas em prece aos céus, em orações perdidas pelos que partem.

Multidões viam passar o cortejo divididas entre os pêsames prévios aos pais e as barracas das bifanas, atiravam pétalas brancas aos morituri que se juntavam na palidez das faces, na palidez das vestes ao branco do chão pintado pelas pétalas que caiam como flores de amendoeira.

Em paz e em filas se dirigiram à Torre.
As autoridades morais aguardavam-nos com palavras grandiloquentes e por fim saltaram.

Ordeiramente, mesmo que alguém se arrependesse e quisesse continuar morto em vida por mais algum tempo os que vinham atrás na fila não o deixariam, saltava na mesma.

Alguns ainda tinham tempo de acenar aos entes queridos, à mãe, ao pai, à rapariga a quem tinham furtado um beijo escondido num recanto da escola e estes retribuíam com outro aceno que já não era visto pelo saltador mas por outro saltador que se lhe seguia e que à distância pensava ser um aceno para si dos seus entes queridos, o que tanto fazia pois todos nós temos apesar de tudo entes que nos são queridos e que nos querem.

Monday, June 19, 2006

 

A Ponte da Glória XII, O Passaporte para a Glória

Quer dizer, passou pelos sítios do costume e viu que o puto do bolicao desta vez trazia uns metros atrás um tipo com ar de pai que o seguia com um ar distraído como quem não quer a coisa.
Ora pais não era a sua especialidade, a começar pelo seu próprio.
Antes que o puto o visse decidiu ir ter com o banco do jardim em que tinha esperança que o cego estivesse sentado com a sua bolsa, a bengala, os óculos escuros e as pedrinhas.

«Então não foste de cana? Decidiste mudar o teu destino?»
- «Não me apeteceu. E a coisa estava mais para o levar um enxerto que para o ir de cana. Como é que sabes que sou eu, reconheces-me a maneira de andar pelo som dos passos? Vi um filme em que era assim…»
- «Não, não é preciso esse esforço todo, tu não gostas de tomar banho, pois não?»

- «Enganei as tuas pedras.»
- «Enganaste as tuas, as minhas não, eu sabia que hoje de manhã estavas aqui, estava à tua espera.»
- «Achas que tenho assim tanto interesse pelas tuas pedras?»
- «Não, mas acho que tens um interesse muito grande pela minha bolsa.»
- «Olha que já nem me lembrava dela.»
- «Pois. E planos para hoje, para além de me tirares a bolsa, claro?»

Que não tinha, que nunca tinha. Tentou pôr um ar blasé tipo nunca faço planos com mais de duas horas de antecedência mas lembrou-se de que a capacidade de acreditar na sua treta por parte do cego era limitada e disse a verdade tal como a entendia, que não tinha planos, estava à espera que o vento lhe desse uma inspiração qualquer, não tinha intenção de fazer nada e se calhar ia fazer isso mesmo com os amigos. Nada.

Que se sentasse, disse-lhe o cego, estás melhor comigo e com as minhas pedras. Que era um especialista em nadas, um nadólogo, um dos poucos que restavam depois das perseguições. Sabia avaliar o nada pelo sabor, pelo cheiro e pelo cansaço que provocava. Sabia distinguir o nada nas suas três espécies e quatro componentes, sabia distinguir um nada ligeiro de um nada profundo, sabia navegar no nada acompanhado das suas pedrinhas. O vazio era seu conhecido, tratava por tu o oco e os seus descendentes sem conteúdo. Era seu brasão um copo de água sem água (que sabia perfeitamente distinguir de um copo de vinho sem vinho ou de uma caneca sem cerveja sem os ver, sem os tocar, sem ser pelo som, apenas pelo sabor do vazio, o sabor de um copo sem água era para si completamente diferente do sabor do mesmo copo sem vinho). Era um especialista em nada, no grande Nada.

Se calhar era o nada que os irmanava, a ausência era-lhes cara a ambos e ficaram a falar sentados no banco do jardim a manhã toda. E teriam ficado ainda a tarde se o rapaz não tivesse aproveitado o calor posto pelo cego na descrição da sensação do vazio e não se tivesse finalmente apoderado da bolsa.

Correu com ela e abriu-a: O Bilhete de identidade, uma sandes de fiambre e um par de peúgas. E ainda uma faixa amarela daquelas de pôr na cabeça.

O cego descansou, tinha-lhe levado algum tempo mas finalmente dera a conhecer ao rapaz a cor da esperança, o amarelo do clube, o passaporte para a Glória.

Monday, June 12, 2006

 

A Ponte da Glória XI, As Pedrinhas da Sabedoria

Um tipo sentado num banco de jardim a brincar com umas pedrinhas. Ao lado dele uma bolsa e uma bengala. Na cara uns óculos escuros.

Devia ser cego.

A curiosidade de ver se tinha alguma coisa de valor na bolsa fê-lo aproximar-se. Passou uma vez pela frente, outra por detrás. Convenceu-se que o tipo dos óculos escuros era mesmo cego, passou por outra vez detrás do banco e atirou a mão à bolsa. Ficou com a mão presa como numa ratoeira. Puxou, o tipo não o largava, tentou bater-lhe, o outro esquivava-se. Tirou a faca da algibeira e levou um par de estalos que o fez largar a faca e vir as lágrimas aos olhos.

Começou a sentir-se incomodado e furioso, levar porrada de um cego mexia com a sua dignidade.

«Estás mais calmo?»
Respondeu com um rosnido. Se este tipo pensar que eu amansei talvez me largue.
«Senta-te»
Tá bem, de outro modo ele não me larga.
«Querias saber o que está dentro da bolsa? Eu digo-te: O Bilhete de identidade, uma sandes de fiambre e um par de peúgas. Qual destas coisas te interessa mais?»

Não podia ser. Não podia haver só aquilo na bolsa do cego.
Fez uma pose descontraída e riu-se.
«Queres sentar-te aqui? Isto é, se eu te largar a mão?»
«Para quê?»
«E porque não? Estás com pressa de ir roubar bolsas a ceguinhos?»
Tá bem, pensou, sento-me, dou-te duas de treta e levo o saco todo!

«Ok, podes largar.»

Sentou-se.
«Isso são pedras de quê?» Como se estivesse interessado.
- «São de um jogo filosófico: coloco uma pergunta a mim mesmo e se tiver resposta ponho uma pedra dentro deste copo à minha direita, se não tiver ponho uma pedra no copo do lado esquerdo, no fim do dia conto as pedras, vejo o que tem mais e fico a saber se foi um dia bom para o conhecimento da humanidade ou não.»
- «Perguntas de quê? Assim como quando andava na escola? Testes? Mas se tu fazes a pergunta já é meio caminho para saberes a resposta…»
- «Queres experimentar?»
- «Onde é que vou estar amanhã a esta hora?»
- «Sabes a resposta para essa pergunta?»
- «Sei, vou estar de cana. Se nem uma bolsa de um ceguinho consigo fazer… Não faz mal, logo a seguir soltam-me.»
- «É bom ir dentro?»
- «Eles não me conseguem fazer nada, prendem-me e soltam-me logo.»
- «E se um dia se esquecem de ti lá dentro?»
- «Mas tive resposta, não tive? Pedra no copo da direita.»
- «Mas essa era uma pergunta fácil, e se em vez de amanhã fosse no dia a seguir ou na próxima semana?»
- «Não costumo fazer planos com tanto tempo de avanço.»
- «Pois não, não costumas.»

Mas mesmo assim no dia seguinte voltou ao jardim.

Thursday, June 01, 2006

 

A Ponte da Glória X, Por Ser Dia Mundial da Criança

Chegou a casa eram oito da manhã.
De caminho para o quarto parou no frigorífico a ver se havia alguma coisa para comer.
Vazio.
Aquele frigorífico era o espelho das pessoas que viviam na casa.

Ao ir para o quarto viu o pai a ressonar no sofá da sala.
Tinha havido festa. Foi ao quarto da mãe e ao da irmã. Não estavam, deviam ter fugido para casa da vizinha, a mãe para que ele não lhe batesse, a irmã para não ser violada.
Ainda bem que não estava em casa.
Tinha havido alturas em que era mais lento, ou o pai mais rápido, e não tinha conseguido fugir a tempo.
Resolvera o assunto com uma faca, numa noite em que o pai estava particularmente agressivo. Espetou-lha na perna e a partir daí a vítima tinha sido a irmã.
Antes ela que ele.

Saiu.
Era a hora dos putos do ciclo irem para a escola com as suas mochilas carregadas de sabedoria, bonecos do homem aranha e lanches.
Tinha fome.

Abordou um miúdo. Mandou-o entregar-lhe a mochila. Lá dentro tinha um bolicao e um pacote com leite com chocolate.
Confiscou-os e atirou a mochila para o chão.
Começou a comer e viu que o puto não se ia embora. Ficava a olhar para ele. O que é que o puto queria mais?

Bebeu o leite e a sua percepção melhorou. Era o bonequinho que vinha com o bolicao, o puto queria o autocolante.

Por isso aquele olhar ansioso enquanto olhava para si.

Demorou-se um bocadinho mais a beber e a comer o bolicao, com muito cuidado para não amarrotar o papel.

Quando acabou viu os olhos do puto iluminarem-se como se nem tudo estivesse perdido, fez menção de atirar o saco de plástico do bolicao para o chão mas como se se tivesse arrependido voltou com o gesto atrás e rasgou cuidadosamente o autocolante antes de o deitar fora.

O puto afastou-se com um ar resignado.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?