Tuesday, February 21, 2006

 

Hoje o Rio era o Cávado.

Quando sintonizo o Rio aparece-me na mira técnica o Tejo.
Bem, sempre é o Rio que corre na minha terra natal.
Correr não é o termo, sou do lado ocidental do estuário, o Rio ali não corre, pára abraçado ao mar.

E como sabe ser bonito e elegante o Tejo, com as suas gaivotas envoltas em nevoeiro e os cacilheiros tristes descaindo passageiros ensonados, apressados, com o seu pôr do sol por cima do Farol do Bugio, os veleiros, o Cais da Rocha visto de cima, de casa da Tia Teresa.

Mas hoje o Rio era o Cávado.

Lá ao fundo, eu não estava lá, tive de ir para lá.
Fui a correr.
Sabes, os pulmões a pedir ar, as pernas a dizer corre, as mãos geladas do frio, os passos a ressoar nos caminhos ainda vazios.
Os cheiros. Quem vem do interior e sente o cheiro a estrume dos campos de batatas até se chegar à parte encantada da questão, mais junto ao Rio.

O Rio hoje de manhã era o Cávado.

E o Sol gostou de me ver, Bom dia! dizia ele e punha o seu melhor cor-de-laranja no céu a saudar os trolhas que esperavam cheios de frio a carrinha do patrão boné enfiado até aos olhos, cigarro na boca para ver se o fumo aquece alguma coisinha que seja, os agricultores de galochas de montar tractores a caminho das batatas.

E quando se chega junto do Rio as casas põem um ar mais distinto, ar de abandonada à semana só passas os fins-de-semana comigo e vais logo embora, e os cães.
Atiram-se contra os portões com saudades de um naco de canela de corredor, saudades de correr no campo como um vício ancestral que lhes ficou na massa do sangue e não sabem o que hão de fazer com ele por isso atiram-se para cima dos portões e ladram e abafam o som dos passos.

O Rio era o Cávado e estava à minha espera, espelhado de sol nascente.

Monday, February 20, 2006

 

O Tempo

1.Formas de criação.

O Tempo cria-se em geral por intervenção divina.
Um pai que devora os seus próprios filhos, momento a momento, talvez seja uma imagem demasiado dura da criação do tempo.

No entanto imagina que no princípio não havia tempo, tudo era Uno.
Haver tudo e não haver nada não eram coisas distintas.

O Uno retraiu-se para um ponto sozinho no mundo e auto destruiu-se numa explosão de fogo de artifício inaudível porque não havia espaço para que o som se propagasse.

Nessa altura passou a haver tempo.

2. Formas de passagem.

Não é tanto o tempo como a gravidade o que nos pesa.

Passa sempre. Tudo passa.
Repara numa corrente eléctrica.
Passa e depois de passar como é que se sabe que já passou?
Só se dá por ela se se estiver na passagem.

Uma afeição.
Pedro e Inês.
Sabemos, supomos saber, que se amavam.
O que resta desse amor? Dois túmulos escavacados na memória colectiva.
Mas para além da memória (concedendo que não se trate de um implante) o que sobra do seu afecto?
Vês de que cor é? Ouves o seu sabor?
O som das correntes de afecto a passar de peito a peito, qual é?

Um carro eléctrico. Uma carreira. O 28 para a Graça.
Passa. A seguir vem outro. De tantos em tantos eléctricos o carro é o mesmo.
Mas os passageiros são os mesmos?
E o condutor?
Esse deixamo-lo ficar mas transferimo-lo amanhã para outra carreira, uma que vá para a Ajuda, por exemplo.

É o tempo.

3. Formas de o iludir.

Compras um relógio de corda.
Não lhe dás corda, deixa-lo escolher o seu próprio tempo.
Não te preocupes, os relógios são sábios e o teu relógio parado estará sempre a horas.

Depois compras outro relógio.
Este queres que ande.
Quando for meia noite acerta-lo na uma da manhã.
Esse constitui o relógio do futuro.
Coloca-lo numa prateleira, atrás de uma vitrina para não apanhar pó, na sala de tua casa.

A esses dois juntas outro.
Esse há de andar com uma hora de atraso.
Quando for meia-noite acerta-lo nas onze.
É o relógio do passado.

Como não há presente, o futuro que acabo de escrever ali já é passado aqui, 31 letras e 10 espaços depois, para saberes as horas fazes a média entre o passado e o futuro, isto se fores uma pessoa conservadora.
Se fores uma pessoa progressista fazes a média entre o tempo do futuro e o do passado.
Como eu sou uma pessoa conservadora, um coleccionador de momentos, um saboreador de nanossegundos, começo pelas 09h05 no relógio do passado e peço uma segunda opinião ao relógio do futuro, que me diz que são 11h05.
É razoável concluir que são 10h06, dado o tempo necessário à realização desta operação.
Com o tempo hei de acabar por conseguir fazer a operação ainda às 10h05.

Esta é a forma cronológica, em que dividiste o tempo (por enquanto apenas em horas) há a seguir a forma pessoal, aquela em que assumes diversas personalidades, o que te permite tomar banho enquanto bebes um café e calçar os sapatos antes de calçar as peúgas (ou o equivalente feminino disto) de forma a não molhar os pés no chão da casa de banho, correr um joggingzinho matinal enquanto lês o periódico.

4. Formas perigosas de lidar com o tempo.

Esse é um capítulo reservado visto que o tempo se divide em três partes.
Mas, dirás tu, em três partes se divide a contagem do tempo não o tempo em si.
Certo, mas o tempo em si é exclusivamente uma contagem.
É uma questão de contas.
Como as esferas celestes.
Como as cordas da música.

Friday, February 17, 2006

 

Groo, O Errante

Mesmo um relógio parado dá as horas certas duas vezes por dia.
É difícil errar sempre. Mesmo o Groo nem sempre erra.
Por vezes fica no mesmo sítio por alguns momentos.

Errando um dia, on the road, numa mão a espada, o ganha-pão do cavaleiro errante, na outra um pão com queijo foi abordado por um mago.
Pelo menos parecia um mago. Barba branca longa suja, chapéu de bico, bengalão, olhar perdido como se estivesse a ler o Zohar de memória.
Ganha bem como cavaleiro errante? – Perguntou-lhe.
E o Groo - Que vai dando para o pão com queijo.

O mágico: «Toda a gente erra».
Groo: «É um facto».
O mágico: «Mas poucos ganham com isso».
Groo: «Pois».
O mágico: «O meu jovem amigo gostaria de tentar um trabalho, quer dizer trabalho até nem é muito é mais uma ocupação de tempos livres, mais rendoso?»
Groo: «E seria a fazer o quê?»

E o mágico explicou-lhe que era pouca coisa, tomar conta dos erros do mundo. As pessoas cometem erros, pagam por eles, incomodam-se, perdem tempo, se o Groo quisesse ficaria com os erros das pessoas, tomaria conta deles, acarinhá-los-ia como se fossem coisas vivas, cometê-los-ia por conta das outras pessoas, seria sempre sua a responsabilidade dos erros do mundo. - «Que acha, meu jovem amigo?»

Groo nem hesitou: «Não é por acaso que me chamam Groo o Errante»

Mergulhou nas suas novas tarefas com todo o ardor do recém-convertido.

Errou, errou, errou e continua a errar, é a parte da humanidade que só comete erros, por isso é que nós, os outros, somos tão puros.
Será que Groo tomou uma decisão acertada ao aceitar cometer todos os erros da humanidade?
Será que esse foi um dos seus primeiros grandes erros?
Será que o mago agiu com pureza de sentimentos?

Para uma resposta completa siga as instruções que lhe serão entregues na próxima noite de Lua Cheia numa cabine telefónica perto de si, entre as 03h00 e as 04h00.

Sunday, February 12, 2006

 

As Aventuras do Prícipe Achmed (versão não autorizada) parte XIV O Amor às Vezes Dói

Fixado na cor dos olhos de Her Wah Achmed não percebia bem o que estava a acontecer.

O patinho recompunha-se com celeridade, adoptava agora uma postura algo ambiciosa, sentara-se numa cadeira de braços e fumava um charuto enquanto se ia servindo do iogurte com sabor a morango.

O elevador do centro da sala apresentou-se em quarto minguante e dele saíram três mulheres. Eram muito belas embora qualquer coisa na sua aparência, talvez na maneira de vestir, talvez na forma sinistra dos olhos fizesse lembrar as criaturas horrendas que tinham acompanhado o coleccionador de momentos na sua primeira aparição.

Caminharam sobre o Luar triste do quarto minguante e uma delas deu um ramo de laranjeira a Her Wah.

Her Wah voltou-se para o Coleccionador de Momentos e sorriu.

Achmed sentiu-se a mais. Mais uma vez não percebia bem o que estava a acontecer.
Patinho, explica-me.

O pato cresceu, transformou-se num cisne primeiro, depois tornou-se num enorme pavão que encheu a sala.
Sorriu para Achmed e disse-lhe que tanto Her Wah como o Coleccionador de Momentos eram deuses como ele, patinho-cisne-pavão, Achmed um simples mortal.

Her Wah não era nem nunca tinha sido para si, estava reservada desde o nascer dos tempos ao Coleccionador de Momentos.

O Coleccionador de Momentos e Her Wah deram-se as mãos, Achmed olhou mais uma vez os olhos cor de mel de eucalipto de Her Wah, e dirigiu-se ao elevador.

Levou consigo o que sobrava do iogurte com sabor a morango, uma pasta de dentes e as três criaturas da Lua.
Mergulhou com elas no luar e ficaram a nadar até ao fim da noite.

Nessa altura deram-lhe uma romã.

Ficou a comê-la durante um bocado e depois decidiu ir trabalhar.

Tuesday, February 07, 2006

 

As Aventuras do Príncipe Achmed (versão não autorizada) Parte XIII O Regresso do Patinho de Borracha

Desta vez o que tocava à campainha era o cheiro do fumo do cigarro com sabor a Her Wah.
Consciente de que podia ser mais um truque do coleccionador de momentos Achmed dirigiu-se pé ante pé à porta e espreitou pelo óculo.

Era ela. Os olhos cor de mel de rosmaninho espalhavam quietude através do óculo como raios de paz.
Abriu a porta e fê-la entrar.

Trazia o inevitável cuco e uma romã, começou a brincar com os olhos com Achmed mas viu o ar triste dele e pediu-lhe uma resposta «que é que te aconteceu?» - «foi o pato, o meu pato, o meu amigo, morreu para me defender» - mas onde estava o patinho, perguntava-lhe ela, e ele que não precisou de lhe dizer mais nada pois o corpinho amarelo de borracha estendia-se no chão triste da sala.

«Posso tomar banho com ele?» Perguntou Her Wah comovida.
«Podes, claro, é uma última homenagem.»
Que talvez não, sussurrou ela com ar enigmático. Pôs a romã no meio da sala e dirigiu-se com o patinho para a casa de banho. «Onde é que tens a toalhas?» e pôs a água da banheira a correr.

Estranha rapariga, pensou ele, não se despe para tomar banho, e então percebeu que Her Wah não estava a tomar banho. Pousara o corpo do patinho delicadamente na água e vira-o flutuar.
«Vês? Flutua. Dá-se bem na água o teu pato.»
Leves sinais de vida e um pequeno sorriso no bico do pato.
Combalido sim mas não morto.

Her Wah leva-o para a sala embrulhado numa toalha, põe-no na mesa e sentam-se os dois em volta dele com os rostos preocupados reflectindo esperança.
Her Wah dá-lhe um beijo.

No pato.
Este acorda e diz qualquer coisa dificilmente perceptível mas que fazia lembrar uma tirada do Donald.

O cuco entretanto dava mostras de alguma agitação, andava de um lado para o outro em passos curtos.
Tal era a alegria que nem Achmed nem Her Wah deram por isso.

Achmed foi à cozinha e trouxe uma saladeira com iogurte de sabor a morango.
«E se a gente abrisse a romã e a deitasse no iogurte?»

»Talvez ficasse um pouco carregado de frutos vermelhos» disse o cuco enquanto compunha o nó da gravata, «mas por princípio não acho mal».

«Mas tu falas» disse Achmed.
«Mas tu és o coleccionador de momentos» disse Her Wah, mais lesta.

«Sim, sou. Confesso. Mascarei-me de cuco para te acompanhar, Her Wah, pois tu és a criatura mais maravilhosa do mundo.»
- «E é assim que me tratas? Plantas-me no meio das flores?»
«E a mim, multiplicas-me e matas-me o patinho de tomar banho?»
- «Pois, mas eu de ti não gosto mesmo».

Achmed e o coleccionador de momentos cresceram um para o outro, num anunciar de partir móveis e encher as alcatifas de sangue.

Nesse instante a voz do patinho de borracha fez-se ouvir: «Parem de lutar» ordenou, portem-se como cavalheiros.
«Pois, mas era isso mesmo que íamos …»
«Parem», ordenou de novo o pato.
«Gosto de paz, não me apetece andar a limpar isto depois» continuou.
«Sentem-se e falem».

Ainda a rosnar sentaram-se os três à volta da saladeira com o iogurte de morango e começaram a servir-se.
Comeram uma valentes pratadas e o Coleccionador de Momentos disse: «Isto com romã sabe mesmo bem!»

Os olhos de Her Wah iam ficando da cor do mel de alecrim.

A suivre…

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